O resultado de contratar programadores com autismo

O resultado de contratar programadores com autismo

Entre as bancadas de trabalho de uma equipe na SAP Labs Latin America, na cidade gaúcha de São Leopoldo, uma destoa. Longe do corredor, a mesa decorada com fotos de família e imagens dos personagens da saga Star Wars é a única com divisórias. O isolamento foi levantado a pedido da dona do espaço, a curitibana Márcia Machado, de 41 anos. O vaivém de pessoas, o burburinho, as luzes — a agitação típica dos escritórios lhe é insuportável.

Em seu intramuros (e apesar dele), não é raro encontrá-la de óculos escuros e fones de ouvido. “Do contrário, não consigo me concentrar”, diz. Esnobismo? De jeito nenhum. Ela, aliás, é muito querida pelos colegas. A programadora Márcia é portadora de autismo. Considerado por muito tempo incapacitante, o transtorno não a impediu de entrar para o time de profissionais de alta performance da empresa. A SAP Labs é um braço da SAP, multinacional alemã, gigante na área de software empresarial.

A contratação de Márcia aconteceu graças ao projeto Autism at Work (Autismo no Trabalho). Fruto da parceria entre a SAP e a ONG dinamarquesa Specialisterne Foundation, o programa prevê o recrutamento de talentos entre portadores do distúrbio. É o pioneiro nesse tipo de inciativa. “Pessoas com autismo têm habilidades e valores que merecem estar em um currículo: elas são extremamente detalhistas, identificam erros facilmente, usam raciocínio lógico para gerar soluções, comunicam-se com clareza”, elogia a psicóloga Fernanda Lima, diretora de formação da SAP, em São Leopoldo. São habilidades valiosas para muitas companhias. EY, HP e Microsoft adotaram iniciativas semelhantes às da SAP. “Um diagnóstico não pode ter mais peso na vida de alguém do que suas possibilidades”, defende. Não mesmo.

O projeto teve início em 2013, na Índia. Alocados em 22 funções distintas, 120 profissionais com autismo integram hoje o quadro de funcionários da SAP — 12 deles, no Brasil. A meta da empresa é, até 2020, ter 1% das vagas de trabalho preenchidas por portadores do transtorno — o que equivaleria hoje a 880 colaboradores. Apenas 20% das pessoas com autismo, estima-se, ocupam cargos remunerados, em tempo integral — e isso em países de Primeiro Mundo.

Autodidata, nos cinco meses de treinamento na Specialisterne Foundation Márcia percebeu que sua facilidade para aprender e seu poder de organização são habilidades valiosas na área de desenvolvimento de software, que sofre a falta de programadores. Foi uma surpresa. Até a chegada à SAP, ela amargou duas décadas de dificuldades no mercado de trabalho. Enquanto lidava (muito) bem com fórmulas e resultados, via as relações sociais esgarçarem. Por causa do transtorno, Márcia não consegue, por exemplo, entender o que é dito nas entrelinhas. “Meu cérebro busca a lógica”, diz.

O autismo pode também levar à hipersensibilidade auditiva e/ou visual. O cérebro autista capta os sons de forma caótica. Imagine uma orquestra em que cada um dos músicos toca a seu bel-prazer e, na maior parte do tempo, em alto volume. Uma tortura. Por isso, as divisórias, os fones e os óculos de Márcia. Mas o que são divisórias, fones e óculos frente à competência de um funcionário? Para a SAP, nada. “Márcia trouxe um ganho fantástico para a equipe”, diz Rodrigo Silva, gerente de desenvolvimento do time de Localização e chefe direto de Márcia.

A contratação de profissionais com autismo resulta de um novo tópico no extenso debate sobre diversidade. As companhias mais atentas vêm há anos tentando — com variados graus de seriedade e sucesso — derrubar preconceitos, quebrar a homogeneidade de suas equipes e atrair perfis mais variados de profissionais. Nessa linha, costumam pensar nos problemas mais óbvios, como a discriminação de gênero e raça. Mas há outras formas de abordar o tema da inclusão. Levar em conta a neurodiversidade é uma delas. Tudo começou no final dos anos 90. Em um artigo sobre a alta incidência do chamado autismo de alto funcionamento no Vale do Silício, nos Estados Unidos, o jornalista Harvey Blume usou pela primeira vez o termo “neurodiversidade”. Pouco tempo depois, a socióloga australiana Judy Singer recorreu a ele, em um texto, no qual defende: em muitos casos, o autismo não é uma doença a ser tratada, mas “uma nova categoria de diferença humana”. Judy Singer é portadora da síndrome de Asperger, considerada uma condição do espectro autista. Hoje, o conceito de neurodiversidade se estende aos portadores de outros transtornos do chamado desenvolvimento neurológico atípico, como a dislexia e a hiperatividade, entre outros.

Integrar a neurodiversidade de maneira harmoniosa e produtiva não é fácil. Prevê o treinamento de gestores e colegas dos profissionais com autismo. Na SAP, equipes receberam treinamento para entender o autismo e, assim, romper estigmas. Líderes como Rodrigo Silva aprenderam a falar de modo mais claro e objetivo, de modo a evitar mal-­entendidos.

A contratação de funcionários com autismo pelas empresas não reflete apenas a valorização das políticas corporativas de inclusão. É consequência direta também dos avanços nos conhecimentos sobre o transtorno, que atinge uma em cada 68 crianças — na proporção de quatro meninos para uma menina. Descrito pela primeira vez em 1943 pelo psiquiatra austro-americano Leo Kanner (1894-1981), o autismo continua a desafiar a medicina. Assim como sua etiologia, segue também desconhecida a razão por que algumas pessoas possuem as formas mais brandas do distúrbio enquanto outras, em sua versão mais grave, nascem enclausuradas em seu próprio mundo, de onde dificilmente saem, condenadas a movimentos repetitivos. Na Idade Média, eram chamados os “idiotas sagrados”, na crença de que o transtorno era obra de forças divinas. No auge das teorias eugenistas, na primeira metade do século 20, foram esterilizados, confinados a manicômios. O exército hediondo de Adolf Hitler (1889-1945) os caçou e condenou à morte. No rol de bobagens ditas e atrocidades cometidas, o autismo já foi atribuído à falta de amor e dedicação maternos das chamadas “mães-geladeira”.

Graças aos avanços nos conhecimentos sobre a fisiologia cerebral, nas últimas décadas, muita coisa mudou. Ainda bem. Atualmente, o autismo pode ser descoberto nos primeiros meses de vida da criança — em um passado não muito distante, costumava ser detectado quando havia comprometimento da fala ou dos movimentos. Uma das primeiras manifestações do transtorno, já se sabe, se dá mediante a incapacidade do bebê em fixar os olhos nos olhos de seus interlocutores. Em maior ou menor grau, os autistas têm tão pouco interesse por rostos humanos quanto pelo ambiente que os cerca. O diagnóstico e tratamento precoces podem proporcionar a muitos pacientes uma vida quase normal. Noventa de cada cem autistas que recebem suporte ingressam no mercado de trabalho. Sem ajuda, apenas 6,2% conseguem.

Esse é o caso de Márcia Machado e seu colega de trabalho Giovani Ragazzon, de 40 anos. Ambos descobriram o transtorno já adultos, quando seus filhos (sim, muita coincidência) receberam o diagnóstico de autismo. “Eu sentia que precisava ajudá-lo [o filho] de alguma forma”, lembra Ragazzon. “E acabei encontrando muitas respostas para mim também.” Diferente de Márcia, ele já trabalhava na SAP Labs e não titubeou em contar a descoberta para a chefia e para os parceiros de equipe. Ragazzon aponta para o teto e pergunta: “Você ouve o barulho da lâmpada?”. Não. Ele, sim. E em alto e bom som. Fones de ouvido. E óculos escuros — como Márcia, ele também é hipersensível à luz. “Aqui [na SAP Labs], não sou penalizado por minhas dificuldades e, sim, valorizado por minhas qualidades.” Em um dos textos mais tocantes sobre o transtorno, o escritor inglês Nick Hornby, autor de Alta Fidelidade, entre outros, disse, no início dos anos 2000, sobre a convivência com o distúrbio do filho Danny, na ocasião, uma criança: a chave para lidar com o transtorno está em “não se apegar ao que não vai acontecer”. No fundo, um preceito que deveria valer para todos nós, portadores ou não do autismo.