A evolução de produtos em dispositivos inteligentes e conectados — que estão cada vez mais incorporados em sistemas maiores — está reformulando radicalmente as empresas e a competição.
Termostatos inteligentes controlam uma série cada vez maior de dispositivos domésticos, retransmitindo dados de utilização ao fabricante. Máquinas industriais inteligentes conectadas em rede coordenam e otimizam automaticamente o trabalho. Carros enviam dados sobre funcionamento, localização e ambiente aos fabricantes e recebem atualizações de software que melhoram o desempenho ou identificam problemas antes que ocorram. Os produtos continuam a evoluir muito depois de entrarem em operação. O relacionamento das empresas com seus produtos — e clientes — está se tornando contínuo e com duração indeterminada.
Num artigo anterior da HBR Brasil, “Como produtos inteligentes e conectados estão transformando a competição” (novembro de 2014), examinamos as implicações externas à empresa, analisando em detalhes como produtos inteligentes e conectados afetam a concorrência, a estrutura da indústria, fronteiras do setor e estratégias (ver quadro “Implicações na estratégia”). Neste artigo exploramos as implicações internas: como a natureza de produtos inteligentes e conectados muda substancialmente o trabalho de praticamente todas as funções numa empresa de manufatura. Funções centrais — desenvolvimento do produto, TI, produção, logística, marketing, vendas e serviços pós-vendas — estão sendo redefinidas e a coordenação entre elas é cada vez mais intensa. Funções completamente novas estão surgindo, incluindo as destinadas a tratar a assustadora quantidade de dados atualmente disponível. Tudo isso tem grandes implicações na estrutura organizacional clássica da manufatura. O que está ocorrendo talvez seja a mudança mais significativa no setor desde a segunda Revolução Industrial, há mais de um século.
Novas capacidades dos produtos
Para compreender perfeitamente como produtos inteligentes e conectados estão mudando a forma como as empresas trabalham, antes precisamos entender seus componentes inerentes, tecnologia e capacidades — temas analisados em nosso artigo anterior. Recapitulando:
Todos os produtos inteligentes e conectados, desde utilidades domésticas até equipamentos industriais, têm em comum três elementos centrais: componentes físicos (partes mecânicas e elétricas), componentes inteligentes (sensores, microprocessadores, armazenamento de dados, controles, softwares, sistema operacional embutido e interface digital do usuário) e componentes de conectividade (conector de cabos, antenas, protocolos e redes que permitem comunicação entre o produto e a nuvem, que rodam em servidores remotos e contêm o sistema operacional externo do produto).
Produtos inteligentes e conectados requerem uma infraestrutura completa de suporte tecnológico totalmente nova. Essa “pilha de tecnologia” fornece uma porta de entrada para dados entre o produto e o usuário e reúne dados dos sistemas da empresa, recursos externos e outros produtos relacionados. A pilha de tecnologia também funciona como plataforma para armazenamento de dados e métodos de análise, executa aplicativos e protege o acesso aos produtos e o fluxo de dados transmitido e recebido (ver quadro “A nova pilha de tecnologia”).
Essa infraestrutura abre as portas para novas aplicações incríveis de produtos. Primeiro, os produtos podem monitorar e relatar suas próprias condições e ambiente, ajudando a gerar insights, até então indisponíveis, sobre desempenho e utilização. Segundo, o funcionamento de produtos complexos pode ser controlado pelo usuário, por meio de inúmeras opções de acesso remoto. Isso fornece aos usuários uma possibilidade sem precedentes de customizar unção, desempenho e interface dos produtos e de operá-los em ambientes perigosos ou pouco acessíveis.
Terceiro, a combinação entre capacidade de monitoramento de dados e controle remoto cria novas oportunidades de otimização. Algoritmos podem melhorar significativamente o desempenho, utilização e vida útil do produto e a maneira como os produtos se combinam com outros em sistemas mais complexos, como edifícios e fazendas inteligentes. Quarto, a combinação entre monitoramento de dados, controle remoto e otimização de algoritmos resulta em autonomia. Os produtos são capazes de aprender, adaptar-se ao ambiente e às preferências do usuário, executar automanutenção e funcionar por conta própria.
Reformulando a indústria manufatureira
Desde que são projetados até serem disponibilizados aos consumidores, os produtos percorrem uma linha de produção que engloba uma enorme variedade de atividades desempenhadas por um conjunto padrão de unidades funcionais: pesquisa e desenvolvimento (ou engenharia), TI, produção, logística, marketing, vendas, serviço pós-venda, recursos humanos, compras e finanças.
As novas possibilidades oferecidas por produtos inteligentes e conectados alteram todas as atividades da cadeia de valor. Mas os dados ocupam o centro dessa nova cadeia de valor.
>NOVAS FONTES DE DADOS. Antes de os produtos se tornarem inteligentes e conectados, os dados eram basicamente gerados por operações internas e por meio de transações ao longo da cadeia de valor — processamento de pedidos, interações com fornecedores, interações de vendas, visitas de assistência ao cliente, e assim por diante. As empresas complementavam esses dados com informação obtida em levantamentos de dados, pesquisas e fontes externas. Combinando os dados, empresas podiam aprender um pouco mais sobre aspectos de clientes, demanda e custos — mas muito menos sobre a funcionalidade dos produtos. A responsabilidade de definir e analisar dados tendia a ser descentralizada e ensilada. Embora as funções partilhassem informações (dados de vendas, por exemplo, eram usados para administrar estoques de peças de reposição), o compartilhamento era limitado e esporádico.
Atualmente, pela primeira vez, o próprio produto se transformou numa nova fonte que está complementando fontes tradicionais de dados. Produtos inteligentes e conectados podem gerar dados sem precedentes, em variedade e volume e em tempo real. Atualmente, os dados são tão importantes quanto pessoas, tecnologia e capital. São patrimônio central da corporação e em muitos negócios talvez estejam se tornando um bem inquestionável. Esse valor aumenta exponencialmente quando integrado a outros dados.
Os novos dados sobre produtos contêm um valor intrínseco, embora esse valor aumente exponencialmente quando integrado a outros dados como históricos de atendimento, pontos de estoque, preços de commodities e padrões de tráfego. No caso de propriedades rurais, dados de sensores de umidade podem ser combinados com previsões meteorológicas para otimizar equipamentos de irrigação e reduzir o consumo de água. Em frotas de veículos, a informação sobre manutenção pendente de cada carro ou caminhão e sobre sua localização permite que os departamentos de manutenção organizem peças, agendem manutenção e aumentem a eficiência de consertos. Dados sobre status de garantia tornam-se mais valiosos quando combinados com dados sobre utilização e desempenho dos produtos. Se um produto é utilizado em regime contínuo, poderá apresentar um defeito dentro do período de garantia e, então, uma manutenção preventiva poderá evitar gastos com consertos onerosos mais tarde.
FERRAMENTAS ANALÍTICAS. Ao mesmo tempo que a capacidade de extrair o máximo de valor possível dos dados torna-se uma fonte-chave de vantagem competitiva, a gestão, a governança, os processos analíticos e a segurança de dados estão se tornando uma nova e grande função dos negócios.
Se as empresas dispõem de dados de sensores individuais, geralmente conseguem insights poderosos identificando, ao longo do tempo, padrões em milhares de dados de vários produtos. Informação de diversos sensores individuais, como temperatura do motor do carro, posição do acelerador e consumo de combustível, pode revelar se o desempenho do veículo está de acordo com as especificações técnicas do fabricante. Pode ser útil relacionar conjuntos de dados com a ocorrência de problemas, pois mesmo quando a verdadeira causa é difícil de descobrir, esses padrões podem ser acompanhados. Dados de sensores que medem temperatura e vibração, por exemplo, podem identificar um problema grave iminente com dias ou semanas de antecedência. Detectar esses insights é exatamente a função dos métodos de análise de grandes dados que combinam matemática, ciências da computação e técnicas de análise de negócios.
Métodos analíticos de grandes dados utilizam uma série de novas técnicas para analisar esses padrões. Um desafio é que geralmente os dados de produtos inteligentes e conectados e os dados relacionados externos e internos não são padronizados. Eles podem ser coletados numa grande variedade de formatos, como leitura de sensores, localizações, temperaturas, históricos de vendas e garantias. Abordagens convencionais para agregação e análise de dados como planilhas e tabelas de banco de dados são inadequadas para administrar uma grande variedade de formatos. A solução que está surgindo é a formação de um “lago de dados”, um reservatório no qual diferentes fontes de dados podem ser armazenadas em seus formatos originais. Nessas condições os dados são analisados por meio de uma série de novas ferramentas analíticas. Essas ferramentas se distribuem em quatro categorias: descritiva, diagnóstica, preditiva e prescritiva
(para mais detalhes, ver quadro “Criando novos valores com dados”).
Para entender melhor a rica quantidade de dados gerados por produtos inteligentes e conectados, as empresas também estão começando a disponibilizar uma ferramenta chamada “gêmeo digital”. Originalmente concebido pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa dos Estados Unidos (Darpa, na sigla em inglês), um gêmeo digital consiste numa réplica em realidade virtual 3-D de um produto físico. Alimentado pelo fluxo de dados, o gêmeo vai evoluindo para mostrar como o produto físico foi alterado, como está sendo usado e a que condições ambientais foi exposto. Como um avatar do produto real, o gêmeo digital permite que a companhia visualize o status e as condições de um produto que pode estar a milhares de quilômetros de distância. Gêmeos digitais também podem fornecer novos insights sobre como aperfeiçoar projetos, produção, operacionalidade e manutenção.
Transformando a cadeia de valor
Os poderosos novos dados disponíveis, juntamente com novas configurações e capacidades de produtos inteligentes e conectados, estão reestruturando funções tradicionais de negócios — muitas vezes radicalmente. Essa transformação começou com o desenvolvimento do produto, mas está se difundindo por toda a cadeia de valor. À medida que se espalha, fronteiras funcionais estão mudando e novas funções estão sendo criadas.
DESENVOLVIMENTO DO PRODUTO. Para criar produtos inteligentes e conectados é preciso repensar completamente o projeto. O desenvolvimento do produto está mudando, basicamente de uma engenharia altamente mecânica para um verdadeiro sistema de engenharia interdisciplinar. Os produtos tornaram-se sistemas complexos que contêm softwares e podem ter muitos outros softwares na nuvem. Por isso, equipes de designers de produtos não são mais formadas principalmente por engenheiros mecânicos, mas por engenheiros de software. E empresas como GE, Airbus e Danaher estão abrindo escritórios em locais que funcionam como centros de distribuição de engenharia de software, como Boston e o Vale do Silício.
Os princípios de design de produtos inteligentes e conectados também precisam ser completamente diferentes dos modelos tradicionais.
Variabilidade de baixo custo. Nos produtos convencionais, a variabilidade tem um alto custo, porque envolve grande diferenciação de partes físicas. Mas o software de produtos inteligentes e conectados reduz o custo da variabilidade. A John Deere, por exemplo, produz diferentes versões de motores, cada um com uma potência diferente. Atualmente a empresa consegue alterar a potência de um motor padrão usando apenas softwares. De forma análoga, interfaces digitais do usuário podem substituir cursores e botões, tornando mais fácil e menos dispendiosa a modificação de um produto, como, por exemplo, alterar as opções de controle. Atender às necessidades do cliente em termos de variabilidade usando softwares, e não hardware, é uma nova exigência crítica do projeto de produtos.
A variabilidade é importante, não só para alguns segmentos de clientes, mas também para geografias. Softwares também facilitam a adequação de produtos em diferentes países e idiomas. No entanto, regulamentações locais necessárias para a padronização de dados, como as que dizem respeito à transmissão de dados por fronteiras nacionais, requerem duplicidade de infraestrutura de armazenamento de dados ou de aplicativos. Essas regras estão introduzindo novas diferenças regionais e transnacionais, às vezes até por razões políticas.
Design atraente. No modelo antigo, os produtos eram projetados em gerações discretas. Um novo produto incorporava um conjunto completo de melhorias desejadas e o projeto era então mantido fixo até a geração seguinte. Produtos inteligentes e conectados, no entanto, podem ser continuamente aprimorados via software, geralmente de forma remota. Os produtos também podem ser minuciosamente ajustados para atender a novas exigências do cliente ou para resolver problemas de desempenho. Nas máquinas industriais da ABB Robotics, por exemplo, o desempenho é monitorado e ajustado remotamente pelo usuário final durante o funcionamento do produto. As empresas podem lançar novas características como processos em desenvolvimento, que permanecem continuamente inacabados. Recentemente, a Tesla introduziu um sistema de “autopilotagem” em seus carros, mas com a intenção de melhorar a capacidade dos sistemas ao longo do tempo por meio de atualizações remotas do software.
Novas interfaces do usuário e realidade aumentada. A interface digital do usuário de produtos inteligentes e conectados pode ser instalada em tablets ou smartphones por meio de aplicativos que permitem operação remota e até eliminam a necessidade de controles no próprio produto. Como foi observado, essas interfaces são mais baratas de implementar e mais fáceis de alterar que os controles físicos e permitem maior mobilidade dos operadores.
Alguns produtos começaram incorporando uma nova tecnologia poderosa de interface chamada “realidade aumentada”. Com um smartphone ou tablet orientado para o produto, ou por meio de óculos inteligentes, aplicativos de realidade aumentada exploram a nuvem do produto e geram uma estratificação digital do produto. Essa estratificação contém informação de monitoramento, operação e manutenção que torna o suporte ou manutenção do produto mais eficiente. A construção dessas poderosas interfaces digitais é outra nova exigência crítica do design do produto.
Gestão contínua da qualidade. Testes para replicar as condições de uso já fazem parte do desenvolvimento do produto. O objetivo é garantir que novos produtos cumpram suas especificações e minimizar reclamações dentro do prazo de garantia. Produtos inteligentes e conectados também promovem grandes avanços na gestão da qualidade, facilitando o monitoramento contínuo de dados de desempenho do mundo real, permitindo que as empresas identifiquem e solucionem problemas de projeto não detectados nos testes. Em 2013, por exemplo, as baterias de dois carros modelo S da Tesla foram perfuradas e pegaram fogo depois de os motoristas terem atingido objetos metálicos na estrada. As condições da rodovia e a velocidade que levaram à perfuração não tinham sido simuladas nos testes, mas a Tesla conseguiu reconstruí-las. A empresa então enviou uma atualização do software para todos os veículos que elevaria a suspensão nessas condições, reduzindo significativamente as chances de futuras perfurações.
Serviços conectados. O projeto de produtos atualmente precisa incorporar instrumentação e capacidade de coleta de dados adicionais e softwares de diagnóstico de componentes que monitoram a saúde e desempenho do produto e que alertam o pessoal de serviços sobre avarias. E, à medida que a funcionalidade do software aumenta, novos projetos de produtos podem incluir mais serviços remotos.
Suporte para novos modelos de negócios. Produtos inteligentes e conectados permitiram que as companhias substituíssem os modelos de venda transacional por modelos produto-como-serviço. No entanto, essa mudança tem implicações no design do produto. Quando um produto é lançado como um serviço, a responsabilidade pelo custo decorrente da manutenção permanece com o fabricante, e isso pode alterar vários parâmetros do design. Isso ocorre principalmente quando vários clientes partilham o produto, como no caso da Smoove — um serviço de compartilhamento de bicicletas na França. A Smoove projetou bicicletas inteligentes e conectadas com câmbio sem corrente, pneus à prova de furo e um sistema antivandalismo para melhorar a durabilidade e evitar furtos.
Produtos lançados como serviços também precisam coletar dados sobre utilização para que clientes possam ser adequadamente cobrados. Isso requer uma ideia clara sobre tipo e localização dos sensores,dados a ser coletados e frequência com que serão analisados. Quando decidiu mudar sua condição de vendedora de copiadoras para empresa cobradora pelos documentos que copiava, a Xerox introduziu sensores no tambor do fotorreceptor para cobrar o valor exato do cliente e facilitar a venda de consumíveis como papel e toner.
Interoperabilidade de sistemas. Quando produtos inteligentes e conectados são componentes de sistemas maiores, as oportunidades de otimização do projeto se multiplicam. O codesign permite que empresas desenvolvam e aprimorem hardware e software simultaneamente, por meio de uma série de produtos, incluindo os de outras empresas. Veja o caso do termostato inteligente da Nest Lab. Ele foi projetado como uma interface de aplicativo programável que permite troca de informação com outros produtos, como as fechaduras inteligentes da Kevo. Quando o proprietário entra em casa, a fechadura Kevo transmite essa informação ao termostato Nest, que então ajusta a temperatura de acordo com a preferência do usuário.
MANUFATURA. Produtos inteligentes e conectados criam novas necessidades e oportunidades de produção. Eles podem até ser montados no local indicado pelo cliente, onde o último passo é carregar e configurar o software. Mas o que ainda é mais radical é que a manufatura vai além da produção do objeto físico, porque para um produto inteligente e conectado funcionar ele depende de um sistema baseado na nuvem que deve perdurar durante todo o ciclo de vida do produto.
Fábricas inteligentes. As novas capacidades de máquinas inteligentes e conectadas estão reformulando as operações da própria indústria de manufatura, onde máquinas são cada vez mais conectadas formando sistemas. Em novas iniciativas como a Industrie 4.0 (na Alemanha) e a Smart Manufacturing (nos Estados Unidos), máquinas conectadas em redes automatizam e otimizam completamente a produção. Uma máquina de produção, por exemplo, pode detectar um mau funcionamento potencialmente perigoso, desligar outros equipamentos que possam ser danificados e orientar a equipe de manutenção para o problema. A iniciativa Brilliant Factories da GE utiliza sensores (adaptados a modelos mais antigos de equipamentos ou projetados em novos equipamentos) para encaminhar a informação para um lago de dados, onde ela é analisada e fornece insights para reduzir períodos ociosos e melhorar a eficiência. Em certa fábrica, essa abordagem dobrou a produção de unidades sem defeito.
Componentes simplificados. Quando a funcionalidade muda de partes mecânicas para software, a complexidade física dos produtos geralmente diminui. Essa mudança elimina componentes físicos e reduz os passos de produção necessários para criá-los e montá-los. A Withings, por exemplo, transformou seu monitor de pressão sanguínea num bracelete com sensor, substituindo o display por um aplicativo que monitora a pressão sanguínea e envia atualizações diretamente aos médicos. Da mesma forma, fabricantes de aeronaves, automóveis e barcos estão utilizando cockpits de vidro, em que uma única tela exibe inúmeros medidores configuráveis. No entanto, à medida que a complexidade física dos produtos diminui, a quantidade de sensores e softwares aumenta, introduzindo novos componentes e novas complexidades.
Reconfiguração de processos de montagem. A evolução da manufatura segue na direção de plataformas padronizadas, com customização de produtos individuais, cada vez mais tardia, no processo de montagem. Essa abordagem ganha economia de escala e reduz estoques. Softwares no produto ou na nuvem podem ser carregados ou configurados muito depois de o produto sair da fábrica, pela assistência técnica móvel ou até pelo cliente. Novos aplicativos podem ser adicionados ou digitados em teclados touchscreen configurados para diferentes idiomas. Alterações no design de produtos podem ser incorporadas até o último minuto, mesmo depois da entrega.
Funcionamento contínuo do produto. Até há pouco tempo a fabricação consistia num processo discreto que só terminava quando o produto era expedido. Produtos inteligentes e conectados, no entanto, não funcionam sem a pilha de tecnologia baseada na nuvem. Na verdade, a pilha de tecnologia constitui um componente do produto — que o fabricante precisa operar e melhorar durante todo o ciclo de vida do produto. Nesse sentido, a manufatura tornou-se um processo permanente.
LOGÍSTICA. Produtos inteligentes e conectados têm suas raízes na logística — setor da manufatura que envolve o movimento de inputs e outputs de produção e a entrega de produtos. Comercializada nos anos 1990, a identificação por radiofrequência, ou etiquetas RFID, melhorou sensivelmente o rastreamento de cargas. Na verdade, o termo “internet das coisas” foi cunhado pelo fundador do Centro de Autoidentificação do MIT, que se especializou na pesquisa de RFID. Os produtos inteligentes e conectados atuais se encarregam do rastreamento num patamar completamente novo. Atualmente ele é ininterrupto, onde o produto estiver, sem necessidade de escâner, e fornece informação detalhada não só de sua localização atual, mas também do histórico de localização, das condições (temperatura, exposição a tensões, etc.) e do ambiente que o cerca.
Acreditamos que produtos inteligentes e conectados acabarão criando uma geração completamente nova de logística. A administração de grandes frotas remotas de veículos, por exemplo, está se transformando graças ao monitoramento remoto da posição e função de cada veículo, observação do tráfego local e previsão do tempo e fornecimento de cronograma de entrega otimizado aos motoristas. E drones automatizados capazes de liberar cargas diretamente na porta do cliente — que estão sendo testados pela Amazon, Google e DHL — poderão revolucionar o processo de entrega de vários produtos.
MARKETING E VENDAS. A possibilidade de permanecer conectado ao produto e rastrear como ele está sendo usado muda completamente o foco do relacionamento com clientes da empresa, desde vendas — uma única transação, na maioria das vezes — até a maximização do valor do produto para o consumidor ao longo do tempo. Isso representa novas necessidades e oportunidades importantes para marketing e vendas.
Novas formas de segmentar e customizar. Os dados de produtos inteligentes e conectados fornecem um quadro muito mais claro sobre a utilização de produtos, mostrando, por exemplo, quais características os clientes preferem ou quais deixaram de usar. Ao comparar padrões de utilização, as empresas podem realizar uma segmentação muito mais estratificada do cliente — por setor, geografia, unidade organizacional e até atributos mais genéricos. Profissionais de marketing podem aplicar esse conhecimento mais profundo para modelar ofertas especiais ou pacotes de serviço pós-venda, criar diferenciadores para determinados segmentos e desenvolver estratégias de preço mais sofisticadas que melhor compatibilizem preço e valor para o segmento ou até para um cliente individual.
Novos relacionamentos com clientes. À medida que o foco é desviado para fornecer valor contínuo ao cliente, o produto passa a ser um meio para entregar esse valor, e não mais um fim. E como o fabricante permanece conectado com os clientes via produto, ele dispõe de uma nova base para manter um diálogo direto e constante com eles. Empresas estão começando a enxergar o produto como uma janela para as necessidades e satisfação dos clientes, em vez de depender deles para descobrir suas necessidades e desempenho do produto.
A All Traffic Solutions, por exemplo, produz placas inteligentes e conectadas de sinalização para rodovias. Essas placas medem velocidade e volume de tráfego, permitem avançada mineração de dados a partir de padrões de tráfego e ajudam no policiamento, fiscalização, monitoramento remoto e administração do trânsito nas rodovias. O relacionamento da empresa com clientes passou da venda de placas de sinalização para venda de serviços de longo prazo que melhoram a segurança e reduzem a intervenção policial. A sinalização consta simplesmente de dispositivos que customizam e disponibilizam serviços de gerenciamento de tráfego.
Novos modelos de negócios. Conhecer de forma transparente como clientes utilizam produtos permite às empresas desenvolver modelos de negócios completamente novos. Veja o caso do modelo pioneiro da Rolls Royce “potência por hora de voo”, no qual as empresas aéreas pagam pelo tempo que as turbinas dos aviões a jato são usadas, e não um preço fixo mais os encargos de manutenção e consertos. Atualmente muitas indústrias estão começando a oferecer seus produtos como serviços — uma mudança com grandes implicações em vendas e marketing. Com o passar do tempo, a meta dos vendedores transforma-se em satisfação do cliente, e não apenas em vendas. Para isso é preciso criar um cenário pelo qual todos saem ganhando — clientes e empresa.
Foco em sistemas, não em produtos discretos. À medida que os produtos passam a integrar sistemas maiores, a proposição de valor do cliente aumenta. Qualidade e características do produto precisam ser suplementadas por interoperacionalidade com produtos relacionados. As empresas precisam decidir onde devem se inserir nesse novo mundo: elas devem competir no nível do produto, oferecer um conjunto de produtos intimamente conectados, criar uma plataforma que interseccione todos os produtos conectados, ou fazer os três? Equipes de venda e de marketing precisarão de um conhecimento mais amplo para posicionar seus produtos como componentes de sistemas inteligentes, maiores e conectados. Vendedores precisão ser treinados para vender com esses parceiros e serão necessários incentivos para acomodar modelos de participação de lucros mais complexos.
Veja o caso da SmartThings, que atua no segmento cada vez mais concorrido de automatização doméstica no estilo “faça você mesmo”. Para clientes e fabricantes, a empresa se posicionou como uma plataforma de dispositivos domésticos inteligentes, fáceis de usar. A plataforma tem uma interface de usuário simples e fornece uma série de sensores-padrão que medem itens como umidade, fumaça, temperatura e movimento. Os sensores, que podem ser acoplados a qualquer objeto doméstico, automatizam iluminação, segurança da casa e economia de energia. A companhia também facilita a conexão de dispositivos domésticos inteligentes de vários outros fabricantes ao seu centro de distribuição e formou um amplo ambiente de parceiros que já engloba mais de 100 produtos compatíveis.
SERVIÇOS PÓS-VENDA. Para fabricantes de produtos duráveis, como equipamentos industriais, o serviço pós-venda pode representar lucros e receita significativos — em parte porque o fornecimento tradicional de serviços é inerentemente ineficiente. Normalmente, os técnicos inspecionam o produto para identificar a causa do defeito e as peças a serem substituídas e depois fazem uma segunda visita para realizar o serviço.
Produtos inteligentes e conectados aperfeiçoam o serviço e a eficiência e possibilitam uma mudança radical de serviço reativo para serviço preventivo, proativo e remoto.
Uma só visita. Como os técnicos conseguem diagnosticar o problema remotamente, as peças de reposição necessárias para o conserto já estarão disponíveis no caminhão e na primeira e única visita o problema estará resolvido. Eles também podem consultar informações subsidiárias úteis para a execução dos serviços. Dessa forma, só é necessária uma visita e os índices de satisfação aumentam.
Serviço remoto. Produtos inteligentes e conectados tornam o serviço domiciliar via conectividade cada vez mais prático. Em muitos casos os produtos podem ser consertados por técnicos remotos, como é feito com computadores. Equipamentos para exames de sangue e urina fabricados pela Sysmex são um bom exemplo. No início, a Sysmex dotou seus aparelhos de conectividade para permitir monitoramento remoto, mas atualmente ela também é utilizada nos serviços prestados. Técnicos podem acessar qualquer informação sobre uma máquina, mesmo em outro local. Às vezes, para consertá-la basta reinicializá-la, fornecer o upgrade de um software, ou solicitar informações de um técnico local durante o processo. Como resultado, houve redução dos custos de manutenção e de tempo de equipamento fora de operação e aumento significativo da satisfação do cliente.
Serviço preventivo. Utilizando ferramentas de análise preditivas, organizações podem antecipar problemas de produtos inteligentes e conectados e tomar as medidas necessárias. A Diebold, por exemplo, monitora seus caixas automáticos para detectar sinais precoces de problemas. Quando possível, a manutenção necessária é realizada remotamente, ou um técnico é enviado para ajustar ou substituir componentes. Ao atualizar uma máquina a empresa também pode introduzir correções preventivas, às vezes remotamente.
Serviço baseado em realidade aumentada. A grande quantidade de dados gerados por produtos inteligentes e conectados está criando para o pessoal de serviços novas formas de trabalho: individual em conjunto e com clientes. Uma abordagem recente utiliza as superposições da realidade aumentada já descritas. Quando isso inclui informações sobre as necessidades de serviços do produto e instruções de conserto passo a passo, a eficiência e eficácia do serviço podem aumentar significativamente.
Novos serviços. Dados, conectividade e ferramentas de análise associados aos produtos inteligentes e conectados estão ampliando o papel tradicional de serviços e criando novas oportunidades. Na verdade, a organização do serviço tornou-se uma nova forma de inovação de negócios no setor de manufatura, com reflexos no aumento de receita e lucros graças a serviços que agregam valor como garantias estendidas e referenciais para comparação de equipamentos, frotas ou negócio do cliente. O conjunto de soluções que a Caterpillar desenvolveu para ajudar clientes a administrar suas construções e equipamentos de mineração é um bom exemplo. Depois de coletar e analisar dados de cada máquina distribuída num local de trabalho, as equipes de serviços da Caterpillar orientam o cliente sobre onde instalar o equipamento, quando um número menor de máquinas pode ser suficiente, quando adicionar mais equipamentos para reduzir congestionamentos e como melhorar a eficiência de combustíveis de toda a frota.
SEGURANÇA. Até recentemente, o departamento de TI das empresas era quase sempre o responsável pela segurança de centros de dados, sistemas de negócios, computadores e redes empresariais. Com o advento de produtos inteligentes e conectados, as regras do jogo mudaram. A responsabilidade pela segurança de TI agora é compartilhada por todas
as funções.
Os dispositivos inteligentes e conectados também podem ser um ponto de acesso à rede, um alvo para hackers ou uma plataforma de lançamento para ataques cibernéticos. Produtos inteligentes e conectados estão muito disseminados, expostos e difíceis de proteger com medidas físicas. Como os próprios produtos geralmente têm poder de processamento limitado, eles não conseguem suportar os modernos hardwares e softwares de segurança.
Em geral, produtos inteligentes e conectados compartilham com a área de TI algumas vulnerabilidades bem conhecidas. Eles estão sujeitos ao mesmo tipo de ataque de “recusa de prestação de serviço” que sobrecarrega servidores e redes com uma avalanche de pedidos de acesso. No entanto, esses produtos estão sujeitos a a outros tipos de vulnerabilidade, e o impacto de invasões pode ser mais grave. Hackers podem assumir o controle de um produto ou ter acesso a dados confidenciais que trafegam entre o produto, o fabricante e o cliente. No programa de TV 60 Minutos, a Darpa demonstrou como um hacker assumiu total controle da aceleração e frenagem de um carro. O risco criado por hackers que invadem sistemas de aeronaves, automóveis, equipamentos médicos, geradores de energia e outros produtos conectados pode ser muito mais grave que os riscos de uma brecha no servidor de e-mails de uma empresa.
Os clientes esperam que os produtos e seus dados pessoais estejam protegidos. Por isso a capacidade das empresas de fornecer segurança está se tornando uma fonte de valor — e um potencial diferenciador. Clientes com necessidades específicas de segurança, como as Forças Armadas e organizações de defesa, podem exigir serviços específicos.
A segurança afeta várias atividades. Evidentemente as operações de TI continuarão a desempenhar papel central na identificação e implementação de melhores práticas para a segurança de dados e redes. E a necessidade de incorporar segurança no design de produtos se torna fundamental. Modelos de riscos devem considerar ameaças em todos os possíveis pontos de acesso: o dispositivo, a rede à qual está conectado e a nuvem do produto. Novas técnicas de mitigação de risco estão surgindo: a Agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos, por exemplo, obrigou a introdução de níveis de autenticação em camadas e controle de tempo de uso de sessões em todos os dispositivos clínicos para minimizar o risco aos pacientes. A segurança também pode ser aperfeiçoada autorizando clientes ou usuários a controlar quando dados são transmitidos para a nuvem e de que tipo de dados o fabricante precisa. Em geral, o nível de conhecimento e melhores práticas de segurança no mundo inteligente e conectado estão evoluindo rapidamente.
Privacidade de dados e troca justa de valor para dados também estão se tornando cada vez mais importantes para os clientes. Criar políticas de dados e transmiti-las aos consumidores já é uma preocupação central de departamentos jurídicos, de marketing, de vendas, de serviços, entre outros. Além de resolver as questões de privacidade dos clientes, políticas de dados precisam refletir as leis governamentais, cada vez mais restritivas, e definir, da forma mais transparente possível, o tipo de dados coletados e o modo como serão usados internamente e por terceiros.
RECURSOS HUMANOS. Uma fábrica de produtos inteligentes e conectados nada mais é que um híbrido entre uma empresa de software e uma fábrica tradicional. Para administrar essa mistura, é preciso criar novas habilidades em toda a cadeia de valor, além de novos estilos de trabalho e novas normas culturais.
Novos especialistas. As habilidades necessárias para projetar, vender e oferecer serviços a produtos inteligentes e conectados estão em alta demanda, mas é baixa a oferta. Na verdade, os fabricantes estão tendo cada vez mais dificuldade de encontrar os talentos de que precisam à medida que suas necessidades de mão de obra especializada mudam de engenharia mecânica para engenharia de softwares, de venda de produtos para venda de serviços e de conserto de produtos para administração do tempo de vida do produto.
Fabricantes terão de contratar especialistas em engenharia de aplicativos, desenvolvimento de interface de usuário, integração de sistemas e, principalmente, analistas de dados capazes de construir e rodar ferramentas analíticas automatizadas que ajudam a transformar dados em ações. O analista de negócios ou de dados do passado está evoluindo para um novo tipo de profissional que precisa ter background tanto técnico como em negócios, além da capacidade de transmitir insights das ferramentas de análise para líderes de TI e de negócios.
A falta dessas novas habilidades é particularmente crítica em centros tradicionais de manufatura, que são bem diferentes dos centros de distribuição de tecnologia. Por isso, alguns fabricantes estão se instalando em hotspots como Boston e o Vale do Silício, que compartilham sua manufatura avançada com instituições acadêmicas, fabricantes de hardware e software B2B e produtores emergentes de produtos inteligentes e conectados. A Schneider Electric, por exemplo, está transferindo sua sede americana para Boston. Já na próxima década, os fabricantes poderão acelerar seu aprendizado e aprimorar o recrutamento por fazerem parte desses aglomerados. E eles precisarão de novos modelos de recrutamento, como programas de estágio em universidades locais e programas de cooperação para “emprestar” talentos de negociadores líderes de tecnologia.
Novas culturas. A fabricação de produtos inteligentes e conectados requer muito mais coordenação multifuncional e multidisciplinar que a produção tradicional. Envolve também a integração do staff com diferentes estilos de trabalho e com backgrounds e culturas mais diversificadas — o que pode ser um desafio. Para o desenvolvimento de software, por exemplo, a “velocidade do relógio” é geralmente muito mais rápida que para a produção tradicional. Empresas de RH terão de repensar vários de seus aspectos estruturais, políticos e normativos.
Novos modelos de benefícios. Novas abordagens para atrair e motivar talentos também deverão ser implantadas. Regalias como flexibilidade de trabalho, serviços de concierge, períodos sabáticos e tempo livre para trabalhar em projetos paralelos de interesse pessoal são norma em empresas de alta tecnologia que empregam o tipo de talento pelo qual as companhias manufatureiras estarão cada vez mais interessadas.
Implicações na estrutura organizacional
A natureza mutante do trabalho em toda a cadeia de valor prenuncia uma transformação histórica em empresas de manufatura. Jeff Immelt, CEO da General Electric, comentou certa vez que todas as indústrias acabarão se tornando empresas de software. O comentário reflete o fato de o software já ser parte integrante do produto. Além disso, empresas de software já mudaram de curso basicamente para competir com produtos inteligentes e conectados em aspectos como projetos atraentes, upgrade remoto e modelos de produto-como-serviço (ver quadro “Lições da indústria de software”).
No entanto, a transformação das empresas de manufatura será ainda maior que a das empresas de software. Ao mesmo tempo que incorporam software, nuvem e ferramentas de análise de dados, as empresas de manufatura precisam continuar a projetar, produzir e manter produtos físicos complexos.
Que aspectos da estrutura organizacional serão afetados? De acordo com os argumentos de Jay W. Lorsch e Paul R. Lawrence no clássico trabalho “Organização e ambiente”, qualquer estrutura organizacional deve combinar dois elementos básicos: diferenciação e integração. Tarefas distintas, como vendas e engenharia, precisam ser “diferenciadas” ou organizadas em unidades diferentes. Ao mesmo tempo, as atividades dessas unidades separadas precisam ser “integradas” para haver coordenação e alinhamento. Produtos inteligentes e conectados causam grande impacto tanto na diferenciação como na integração da manufatura.
A estrutura clássica de empresas de manufatura engloba unidades funcionais, como P&D, produção, logística, vendas, marketing, pós-venda, finanças e TI. (Embora a dimensão geográfica da estrutura organizacional também acrescente uma camada de complexidade, ela é menos afetada pelos produtos inteligentes e conectados.) Essas unidades funcionais desfrutam de autonomia substancial. Embora seja essencial integrá-las, boa parte da integração costuma ser relativamente esporádica e tática. Além de alinharem estratégias gerais e planos de negócios, as unidades funcionais precisam estar coordenadas para administrar mudanças (do projeto para manufatura, de vendas para serviços e assim por diante) durante o ciclo de vida do produto e captar feedback do campo que possa aprimorar processos e produtos (informação sobre defeitos, reações dos clientes). Integração entre unidades funcionais ocorre principalmente por meio de equipes de liderança das unidades de negócio e por meio do design de processos formais para desenvolvimento do produto, gestão da cadeia de suprimentos, processamento de pedidos e outros que envolvem várias unidades.
Com produtos inteligentes e conectados, no entanto, esse modelo clássico não funciona. A necessidade de coordenar o projeto do produto, operação da nuvem, melhoria de serviços e engajamento do cliente é contínua e não tem prazo para terminar, mesmo depois da venda. Mudanças periódicas não são mais suficientes. É imprescindível uma forte coordenação transfuncional contínua que inclua projeto, operações, vendas, serviços e TI. Papéis funcionais se sobrepõem e perdem a nitidez. Além disso, surgem funções completamente novas e essenciais — por exemplo, administrar os novos bancos de dados e o novo relacionamento irrestrito e contínuo com clientes. Num sentido mais amplo, a riqueza de dados e o feedback em tempo real de produtos inteligentes e conectados desafiam o modelo de gestão tradicional de comando e controle centralizado, favorecendo escolhas dispersas, mas altamente integradas, e aprimoramento contínuo.
Mas, acima de qualquer coisa, os fabricantes precisam continuar produzindo e mantendo os produtos convencionais, e isso provavelmente não mudará — em alguns casos, durante décadas. Mesmo em companhias de manufatura sólidas e progressistas atuais, produtos inteligentes e conectados representam menos da metade dos produtos comercializados. A coexistência contínua do novo e do antigo constitui um complicador para as estruturas organizacionais.
Que estrutura terão as novas organizações manufatureiras? Estruturas organizacionais estão evoluindo rapidamente, mesmo entre fabricantes líderes de produtos inteligentes e conectados. No entanto, várias mudanças importantes estão se tornando evidentes. A primeira é a maior e mais profunda colaboração e integração entre TI e P&D. Ao longo do tempo essas unidades — e outras — podem começar a se fundir. Além disso, estão começando a surgir três novos tipos de unidade: organização de dados unificados, grupos de desenvolvimento e operações (ou dev-ops) e unidades de gestão da satisfação do cliente (ver quadro “Uma nova estrutura organizacional”). Enquanto isso, atividades envolvendo produto e segurança de dados estão expandindo rapidamente e permeiam várias unidades. No entanto, ainda não está claro que tipo de estrutura surgirá no final. Mais cedo ou mais tarde, praticamente todas as funções tradicionais também terão de ser reestruturadas, tendo em vista o realinhamento crítico de tarefas e papéis em andamento.
COLABORAÇÃO ENTRE TI E P&D. Tradicionalmente P&D criava produtos, enquanto TI se ocupava basicamente da infraestrutura computacional e da administração de ferramentas de software utilizadas por grupos funcionais de toda a empresa, como projeto assistido por computador, planejamento de recursos da empresa e administração do relacionamento com o cliente. No entanto, com o advento de produtos inteligentes e conectados, TI deverá desempenhar um papel mais que fundamental. Hardware e softwares de TI agora estão incorporados nos produtos e em toda a pilha de tecnologia. A questão é: quem será responsável por essa nova infraestrutura de tecnologia: TI, P&D ou uma combinação das duas?
Atualmente, somente TI tem o perfil para atender às tecnologias baseadas em softwares e à infraestrutura necessária para produtos inteligentes e conectados. Unidades de P&D, por seu lado, têm conseguido desenvolver e combinar, com eficiência, componentes elétricos e mecânicos, e muitas delas começaram a dominar o desafio de incorporar software nos produtos. Poucas unidades de P&D, no entanto, têm experiência suficiente para construir e administrar elementos baseados na nuvem da pilha de tecnologia. A partir de agora, TI e P&D precisam estar continuamente integradas. No entanto, as duas funções têm pequeno histórico de colaboração no desenvolvimento de produtos — e em algumas organizações o histórico é de animosidade.
Estão começando a surgir vários modelos organizacionais para esse novo tipo de relacionamento. Algumas empresas estão introduzindo equipes de TI nos departamentos de P&D. Outras estão criando equipes transfuncionais de projeto do produto que incluem representantes de TI, mas ainda mantêm canais de comunicação separados. Na Ventana Medical Systems, fabricante de equipamentos inteligentes e conectados de laboratório, as equipes de TI e de P&D trabalham arduamente para decidir que funcionalidade do produto deve ser colocada na nuvem e quando atualizações de software são necessárias. Na Thermo Fisher Scientific, líder de instrumentação científica, membros do departamento de TI participam diretamente de P&D, com uma estrutura mista de canais de comunicação e metas compartilhadas. Isso tem ajudado a Thermo Fischer a definir e construir a nuvem do produto, coletando, analisando e armazenando dados do produto com segurança e distribuindo dados internamente e para os clientes.
ORGANIZAÇÃO DE DADOS UNIFICADOS. Devido ao volume, complexidade e importância estratégica crescente dos dados, não é mais desejável nem factível que cada função administre dados por conta própria, crie seu próprio arcabouço de ferramentas analíticas, ou mantenha sua própria segurança de dados. Para extrair o máximo possível das novas fontes de dados, muitas empresas estão criando grupos dedicados ao tratamento, coleta, consolidação, agregação e análise de dados. Esses grupos são responsáveis por disponibilizar dados e insights por todas as funções e unidades de negócio. A empresa de pesquisa Gartner prevê que, por volta de 2017, 25% das grandes organizações terão unidades dedicadas ao tratamento de dados.
As novas organizações de dados geralmente são lideradas por um executivo de nível de diretoria — o diretor executivo de dados ou CDO — que se reporta ao CEO ou, às vezes, ao CFO ou CIO. Ele é responsável pela gestão unificada de dados, instruindo a organização sobre como aplicar os recursos de dados, supervisionar direitos e acesso aos dados e direcionar a aplicação de ferramentas analíticas avançadas por toda a cadeia de valor. Recentemente, a Ford Motor Company indicou um diretor executivo de dados e análises para desenvolver e executar uma visão empresarial geral sobre análise de dados. O CDO gerencia o uso de dados de produtos inteligentes e conectados da empresa para entender preferências do cliente, moldar estratégias futuras para carros conectados e reestruturar processos internos.
DEV-OPS. A necessidade de projetos atraentes do produto, de operação e manutenção contínua e de permanentes upgrades está criando um novo grupo funcional, às vezes chamado dev-ops (o termo tem origem na indústria de software, onde é usado para descrever o desenvolvimento e o método de lançamento de um software colaborativo transfuncional). A unidade dev-ops é responsável pela gestão e otimização do desempenho contínuo de produtos conectados depois que saem da fábrica. A unidade reúne especialistas em engenharia de software, provenientes do desenvolvimento de produto da organização tradicional (“dev”) e membros do staff de TI, de produção e de serviços que são responsáveis pela operação do produto (“ops”).
Dev-ops organizam e lideram equipes que reduzem os ciclos de liberação do produto, administram atualizações e correções do produto e fornecem novos serviços e melhorias pós-venda. Eles supervisionam a liberação frequente de pequenos lotes cuidadosamente testados de mudanças nos produtos na nuvem compartilhada, idealmente sem prejuízo para os produtos existentes e usuários no campo. A unidade dev-ops também é responsável por melhorar modelos de serviço preventivo e manutenção do produto.
GESTÃO DA SATISFAÇÃO DO CLIENTE. Uma terceira nova unidade organizacional, que também tem um análogo na indústria de software, é responsável por gerir a experiência do cliente e garantir que ele tire o máximo proveito do produto. Essa tarefa é importantíssima nos produtos inteligentes e conectados, principalmente para garantir renovações nos modelos de produto-como-serviço. A unidade de gestão da satisfação do cliente não necessariamente substitui unidades de vendas ou de serviços, mas assume basicamente a responsabilidade pelo relacionamento com o cliente depois da venda. Essa unidade desempenha funções que unidades de vendas e serviços tradicionais não estão preparadas nem incentivadas para assumir: monitorar a utilização do produto e o desempenho dos dados para medir o valor captado pelos clientes e identificar formas de aumentá-lo. Essa nova unidade não funciona como um silo autocontido, mas colabora de forma contínua com marketing, vendas e serviços.
Unidades de gestão da satisfação do cliente estão mudando a gestão do relacionamento com clientes. Historicamente, os principais meios usados para reunir insights sobre uso do produto e determinar quando um relacionamento com o cliente estava em risco eram pesquisas sobre clientes e call centers. Normalmente, as empresas recebem mais feedback dos clientes quando alguma coisa vai mal — e geralmente quando já é tarde demais.
No caso de produtos inteligentes e conectados, o próprio produto é o sensor que mede o valor entregue aos clientes. Com os dados gerados, o produto pode fornecer à empresa muito mais informação sobre a experiência do cliente: sobre utilização e desempenho do produto, preferências e satisfação do cliente. Esses insights podem evitar evasão de clientes e revelar como eles podem se beneficiar das vantagens adicionais de produtos ou serviços.
RESPONSABILIDADE COMPARTILHADA DA SEGURANÇA DE DADOS. Em muitas empresas, a supervisão executiva da segurança é flutuante. A segurança pode se reportar ao diretor executivo de informação, ao diretor executivo de tecnologia, ao diretor executivo de dados ou ao diretor executivo de conformidade. Qualquer que seja a estrutura da liderança, a segurança tem interseção com unidades de desenvolvimento do produto, dev-ops, TI, equipes móveis de serviço, entre outras. É fundamental um vínculo particularmente forte entre P&D, TI e a organização de dados. Esta última, juntamente com TI, normalmente é responsável pela segurança dos dados do produto, definindo o acesso ao usuário e protocolos de direitos, e identificando e cumprindo normas. Às equipes de P&D e de dev-ops cabe a iniciativa de reduzir vulnerabilidades do produto físico. TI e P&D geralmente são corresponsáveis por manter e proteger a nuvem do produto e suas conexões. No entanto, o modelo organizacional para gestão da segurança ainda está sendo preparado.
Fazendo a transição
Como passar daqui para lá? As mudanças organizacionais que descrevemos são fundamentais. Já estão começando a surgir grupos de dados centralizados, mas a integração entre TI e P&D ainda está num estágio muito inicial. Dev-ops e unidades de gestão da satisfação do cliente são raras, mas seu papel está começando a ser reconhecido e diferenciado. Com o tempo poderão se firmar como unidades funcionais formais.
Em áreas como aeronáutica, instrumentos clínicos e equipamentos agrícolas, produtos inteligentes e conectados terão de coexistir com produtos tradicionais por um longo tempo. Isso significa que a transformação organizacional que estamos descrevendo será evolucionária, e não revolucionária, e muitas vezes estruturas novas e antigas terão de funcionar paralelamente.
Dado o âmbito das mudanças e a falta de talentos e de experiência em produtos inteligentes e conectados, muitas empresas terão de buscar estruturas transicionais ou híbridas.
Como seria essa estrutura transicional? No nível da unidade de negócio muitas companhias encorajaram iniciativas orgânicas de produtos inteligentes e conectados. A uma unidade como TI deve ser atribuído o papel de liderar estratégias e distribuir produtos inteligentes e conectados. Ou um comitê diretor especial formado por chefes funcionais pode ser solicitado a apoiar e supervisionar esse esforço. Algumas empresas estão adquirindo empresas de software ou a elas se associando em iniciativas de produtos inteligentes e conectados, injetando novos talentos e perspectivas em suas organizações. Recentemente, a Caterpillar adotou essa posição, investindo na Uptake, empresa de análises preditivas.
No nível corporativo em empresas com negócios diversificados, estruturas de superposição estão sendo criadas para sondar oportunidades de produtos inteligentes e conectados, identificar os melhores locais para começar, evitar duplicação, formar uma massa crítica de talento e expertise, e supervisionar a infraestrutura de tecnologia. Essas unidades geralmente têm um CEO ou estão sob a tutela de um gestor sênior. Estamos testemunhando o surgimento de três modelos:
UNIDADE DE NEGÓCIO INDEPENDENTE. Uma nova unidade separada, com responsabilidade de lucros e perdas, se encarrega de apoiar a estratégia de produtos inteligentes e conectados da empresa.
A unidade agrega o talento e mobiliza a tecnologia e os ativos necessários para introduzir novos produtos no mercado, trabalhando em conjunto com todas as unidades de negócio envolvidas. O grupo Bosch é uma organização que formou uma unidade dedicada como essa — a Bosch Software Innovations. Ela permite que unidades de negócio baseadas no produto da empresa e clientes externos gerem serviços para produtos inteligentes e conectados.
Uma nova unidade independente está livre das restrições processuais de negócios herdados e das estruturas organizacionais. Em algumas companhias, à medida que expertise, infraestrutura e experiência aumentam, a liderança pode começar a voltar para as unidades de negócio. Em outros casos, unidades independentes podem inibir, em vez de encorajar, iniciativas nas unidades de negócio individuais. O conhecimento adquirido por uma unidade independente também pode se disseminar mais lentamente pela empresa.
CENTRO DE EXCELÊNCIA. Nesse modelo, uma unidade corporativa separada conta com expertise altamente qualificada em produtos inteligentes e conectados. Ela não tem responsabilidade por perdas e lucros, mas é um centro de alto investimento que as unidades de negócio podem aproveitar. A GE mantém um desses centros de excelência no Vale do Silício.
COMITÊ DIRETOR DA UNIDADE TRANSEMPRESARIAL. Essa abordagem envolve a formação de um comitê de líderes pensantes de todas as unidades de negócio, com o objetivo de promover oportunidades, compartilhar expertise e facilitar a colaboração. Esses comitês geralmente não dispõem de poder de tomada de decisão formal, o que pode limitar sua capacidade de conduzir a mudança.
Implicações mais amplas
Produtos inteligentes e conectados estão transformando drasticamente as oportunidades para criação de valor na economia. A manufatura está sofrendo uma reviravolta. No entanto, os efeitos não se restringem à manufatura, mas se espalham por outros setores que utilizam — ou poderiam utilizar — produtos inteligentes e conectados, incluindo serviços (ver quadro “Como produtos inteligentes e conectados mudam serviços”). E o impacto de produtos inteligentes e conectados está apenas começando.
Produtos inteligentes e conectados reformulam não só a competição como descrevemos em nosso artigo anterior, mas também a verdadeira natureza da empresa de manufatura, seu trabalho e sua organização. Eles estão criando a primeira verdadeira ruptura na organização de empresas de manufatura da história moderna dos negócios. E muitas mudanças e desafios organizacionais semelhantes se refletirão em outras áreas.
Para as empresas que estão enfrentando a transição, as questões organizacionais estão atualmente no centro do palco — e não há roteiro. Estamos apenas começando a reescrever o organograma da organização que está em vigor há décadas.
Embora a transição possa ser inquietante e desestabilizadora para muitas empresas, e possa criar verdadeiros desafios competitivos e preocupações com segurança, é importante ver os produtos inteligentes e conectados em primeiro lugar e, acima de tudo, como uma oportunidade de melhorar a economia e a sociedade. Graças a esses novos produtos, estamos preparados para realizar grandes progressos em preservação ambiental — aumentando significativamente a eficiência do solo, da água e do uso de materiais e a eficiência de energia e produtividade no setor de alimentos. Eles poderão ser precursores de grandes avanços para a humanidade — em saúde, segurança, mobilidade, treinamento e muito mais — e muito úteis nos pequenos desafios que enfrentamos no dia a dia, como encontrar rapidamente uma vaga para estacionar.
E eles nos equipam para mudar os rumos do consumo de toda a sociedade. Numa época em que tudo está cada vez mais barato e disponível, negócios e consumidores precisam de muito menos coisas. Produtos inteligentes e conectados nos darão a liberdade de comprar somente artigos e serviços de que temos necessidade, de compartilhar produtos que usamos pouco e de aproveitar os que já temos. Em vez de descartarmos produtos mais antigos à espera da próxima geração, vamos continuar usando produtos que serão constantemente aperfeiçoados, atualizados e modernizados.
Mas e o trabalho? Qualquer grande descontinuidade tecnológica suscita preocupações inevitáveis sobre seus efeitos na empregabilidade e oportunidades, principalmente nos últimos tempos. Acreditamos que as oportunidades exponenciais de inovação oferecidas por produtos inteligentes e conectados juntamente com a imensa expansão de dados que eles criam sobre praticamente tudo serão um gerador eficaz de crescimento econômico. Esses novos produtos não reduzirão nossas necessidades, nem o número de pessoas necessárias para produzi-los. Ao contrário, as novas indústrias, novos serviços e novas funções criadas permitirão que muito mais pessoas atinjam suas aspirações.
E os que não tiverem instrução e habilidades necessárias para a primeira onda de empregos na transição? Essas habilidades estão em falta, mas o grande impacto na empregabilidade e no crescimento provavelmente será positivo. Haverá mais inovação e muitos novos negócios. E produtos inteligentes e conectados poderão ser um nivelador, permitindo que o trabalho das pessoas seja mais produtivo e menos repetitivo e mecânico. Equipe um técnico de manutenção com um aplicativo de realidade aumentada e um smartphone, e ele poderá fazer um conserto complexo mesmo com treinamento limitado. Trabalhadores menos qualificados podem ser instruídos e orientados muito mais facilmente por especialistas. Imagine como o ofício de jardineiro poderá mudar quando quintais e jardins estiverem equipados com sensores que fornecem informação sobre solo, histórico de chuvas, saúde das plantas e áreas problemáticas.
Manufaturas estão liderando a marcha em direção a esse futuro. As transformações organizacionais e do produto são difíceis e incertas. Empresas e instituições capazes de acelerar essa marcha prosperarão e farão uma profunda diferença para a sociedade.
Por Michael E. Porter e James E. Heppelmann