Mesmo mais de uma década depois de as ações de reparação serem postas em prática, como as cotas, por exemplo, que privilégio temos?
’Eu não gosto de ver filme assim. Mexe comigo, me dói ver o que aconteceu com nossos antepassados”, disse ela no sofá vermelho. No outro canto da sala, eu ouvi e questionei na mesma hora. “Mas…por quê? É necessário.” Séria, sentenciou sem delongas: “É triste”. O comercial era do filme 12 anos de escravidão , que seria exibido à noite na TV.
Ela é minha mãe, paraibana de 59 anos, mas que naquele momento parecia ter voltado aos 9 anos, quando escutava as vivências da família segurando na barra da saia da avó dela. Minha mãe é bisneta de escravos. E eu, naquele sofá, fiquei sem argumentos para convencê-la a assistir ao filme.
Talvez por ter 20 anos e não ter tido contato direto com nenhum parente escravizado. Talvez por ter podido discutir a escravidão em sala de aula, de forma séria e em perspectiva, depois da Lei 10639, de 2003, que obrigou o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nas escolas. Talvez por ter tido uma professora negra, Claudia Calmon, a segunda que tive na vida e que estava à frente dessas questões.
Mas, no caso de minha mãe, que foi à escola até a quinta série, isso não aconteceu. Não houve oportunidades para conversar, entender, explicar a dor da história dos bisavós dela em sala de aula. Mesmo hoje, tendo possibilidades de rever a sua trajetória e de seus familiares, com os filhos e com os netos, ela não quer tocar no assunto. Compreendo o silêncio dela, por muitas vezes entender que, sendo a quarta na geração de sua família, ainda sentia e sente diariamente a dinâmica velada de subalternidade colocada pelas casas onde passou como cozinheira de forno e fogão. Entendo quanto seu direito de se expressar foi suprimido, vagando sozinha pelas cozinhas dos lugares onde trabalhou, exercendo a sua “invisibilidade” e servindo o lauto jantar nas casas dos patrões quando ela mesma se preocupava se eu teria o que comer em casa.
Para os mais jovens, tocar no assunto tornou-se mais do que comum. Tornou-se uma forma de questionar quanto o passado de exclusão nos assombra até hoje pelo legado que nos deixou. Como é o caso de Spartakus Santiago, youtuber negro de 23 anos e publicitário que, em seu canal, dialoga de maneira didática sobre raça e sexualidade. Ao criar uma vaquinha para o conserto de um computador e continuar desenvolvendo seu trabalho, viu-se no olho do furacão e alvo de críticas. Para muitos, Spartakus aproveitou-se de seu trabalho de militante para ‘’bancar’’ o luxo de ter um MacBook.
Na verdade, o que houve foi mais uma vez a tentativa de calar quem tem ajudado a manter vivas nossas lembranças. Assim como Spartakus, outros tantos fazem isso, como AD Junior, Nataly Néri, Murilo Araújo, Tia Má. Ao abrirem diálogos sobre racismo, são agredidos por aqueles que oprimem ao mostrar a disparidade ainda posta na mesa.
Lembrei novamente da minha mãe, da dificuldade dela em revisitar as lembranças que incomodam e do sentimento de impotência que ela tem de não saber como lidar com o incômodo. É justamente o incômodo que faz as novas gerações resgatar essas discussões, quase que a fórceps, de volta para a luz do dia. Sem sentimento de vingança, sem sentimento de retaliação, apenas de justiça. E mesmo mais de uma década depois de as ações de reparação serem postas em prática, como as cotas por exemplo, que privilégio temos?
Por Eduardo Carvalho