A má qualidade dos smartphones chineses que superaqueciam, explodiam ou simplesmente quebravam após uma semana de uso, marcou a incipiente produção chinesa de celulares, em uma época em que não havia controle de qualidade e engenharia proprietária
Isso começou a mudar quando o engenheiro chinês Lei Jun teve uma ideia que parece óbvia: criar um produto que não fosse tão caro quanto um Nokia ou um iPhone, mas que adotasse padrões de qualidade. O resultado é que enquanto Nokia e Sony tornaram-se irrelevantes no mercado de telefonia, a Xiaomi, empresa fundada por Jun, virou a exterminadora de celulares ruins. Hoje, ela é a terceira maior vendedora de smartphones do mundo, avaliada em US$ 56 bilhões na bolsa de Hong Kong.
Há duas décadas, as estrelas globais Sony-Ericsson, Nokia e LG moveram para o sul da China suas fábricas de celulares, explorando a base logística de Shenzhen e a mão de obra barata no país. Na época, ter um smartphone era um luxo para americanos e europeus de renda média.
Para tentar atender o mercado interno, ex-funcionários das fábricas coreanas e finlandesas na China começaram a comprar componentes em feiras de Shenzhen e montar seus smartphones, atendendo precariamente os consumidores ávidos por um dispositivo que, além de telefonar, tirasse fotos e enviasse emails. Assim, o comum era as pessoas arriscarem um (literalmente) explosivo HiPhone.
Lei Jun levou três anos para estruturar sua empresa. Ele atraiu investimentos de fundos chineses e contratou engenheiros americanos para projetar smartphones e adaptar o Android ao gosto dos usuários chineses: com a interface apinhada de ícones e múltiplas funcionalidades.
Em 2010, os primeiros dispositivos da Xiaomi chegaram ao mercado chinês, oferecendo conexão 3G e câmera fotográfica com qualidade compatível com as melhores lentes embutidas em smartphones da Nokia. Isso sem contar recursos que faziam toda a diferença para o usuário chinês, como filtros de embelezamento para selfies, que disfarçavam manchas na pele e eram capazes de afinar o rosto.
Voltar-se para o mercado interno permitiu à Xiaomi tornar-se uma empresa multibilionária em apenas três anos. De 2010, ano de sua estreia, até 2013, o valor de mercado da companhia, chegou a US$ 10 bilhões.
Entre todas as marcas chinesas de celulares, como Huawei, Oppo e Vivo, a Xiaomi foi a primeira a estrear produtos reconhecidos por sua alta qualidade e manter seus produtos “high-end” com preço baixo, ainda que isto implique em lucro (quase) zero na venda de cada dispositivo.
Segundo a consultoria NDV, a companhia lucra, em média cinco dólares por dispositivo vendido. Na lógica de Lei Jun, o dinheiro não deve vir do hardware, mas de serviços agregados.
Modelo de barbeador
Assim com uma fabricante de barbeadores não ganha dinheiro com o aparelho de barbear, mas com o consumo recorrente de lâminas e refil, a Xiaomi apostou em disseminar produtos de boa qualidade a preços próximos de seu custo e monetizar sua operação com a vendas de serviços digitais, como assinaturas de streaming de música, vídeo, jogos online e venda de apps. Como na China o Google Play não está autorizado a funcionar, usuários de Xiaomi quase todos escolhem seus apps pela loja da marca MiStore.
A companhia cobra taxas dos gigantes da internet chinesa. Do Baidu para definir como padrão seu o buscador. Da Tencent para vender os seus mais recentes games. Startups estrangeiras que desejem decolar na China também derramam milhões de dólares para promover seu apps na MiStore.
Para disseminar seus produtos, a companhia adota um modelo de produção e venda espartano, além de uma curva de obsolescência mais longa, de 18 meses, face a uma média de 12 meses dos rivais Apple e Samsung. Explica-se: enquanto coreanos e americanos faturam o grosso de seus ganhos com a venda de hardware e precisam incentivar seus fãs a trocarem de aparelho a cada primavera, a Xiaomi não se importa que seus usuários demorem um pouco mais para trocar de aparelho, desde que sigam consumindo seus serviços digitais.
A tática não é bondade de Lei Jun, mas uma estratégia de corte de custos. Como os componentes mais recentes vão caindo de preço conforme surgem inovações na indústria, a produção de um Xiaomi fica progressivamente mais em conta. Item dispendioso no lançamento e venda de lançamentos de qualquer eletrônico no mundo, as verbas de marketing beiram o zero.
Além disso, o percentual repassado a revendedores, operadoras e parceiros de varejo é igualmente nulo. No modelo da Xiaomi, smartphones são vendidos quase que exclusivamente pelo site da empresa e entregues com frete pago pelo comprador. Zero custo com logística.
Já a promoção dos lançamentos é tocada com um engenhoso raciocínio de escassez: poucas unidades são disponibilizadas na estreia e muito barulho é feito pela comunidade de fãs da marca. Enquanto a Samsung investe fábulas no patrocínio de times de futebol e comerciais em TV aberta, a Xiaomi economiza cada centavo e, mais do que isso, repassa os ganhos de escala ao consumidor final.