Em Gwalior, uma cidade congestionada no centro da Índia, um forte do século 8 se levanta com um esplendor medieval em uma planície no coração da cidade. O Forte de Gwalior é um dos maiores da Índia, mas se você olhar entre as torres com cúpulas, pedras esculpidas e afrescos coloridos, vai encontrar um pequeno templo do século 9 encravado em uma rocha.
O Templo Chaturbhuj é como muitos outros templos antigos na Índia – exceto pelo fato de que aqui é o marco zero do zero. Ele é famoso por conter o mais antigo zero como um dígito escrito: está gravado na parede de um templo uma inscrição do século 9 com o número “270” claramente visível.
A invenção do zero foi um enorme e significativo desenvolvimento matemático e é fundamental para o cálculo, tornando possíveis a física, a engenharia e a tecnologia moderna.
Mas o que há de especial na cultura indiana para dar origem a essa criação tão importante para a Índia – e para o mundo moderno?
Nada de nada
Eu me lembro de um TEDTalk do renomado mitólogo indiano Devdutt Pattanaik, no qual ele conta a história sobre a visita de Alexandre, o Grande, à Índia. O conquistador aparentemente conheceu alguém a quem chamou de “gimnosofista” – um homem sábio, que estava nu, possivelmente um iogue – sentado em uma pedra olhando para o céu.
Perguntou a ele: “O que você está fazendo?”
“Eu estou vivenciando o nada. O que você está fazendo?”, respondeu o gimnosofista.
“Eu estou conquistando o mundo”, disse Alexandre.
Ambos riram. Cada um achou que o outro era um bobo e que estava desperdiçando sua vida.
Essa história aconteceu muito antes de o zero ser gravado no templo de Gwalior, mas o gimnosofista meditando sobre o nada de fato tem uma conexão com a invenção do dígito. Indianos, diferentemente de pessoas de muitas outras culturas, já eram abertos filosoficamente ao conceito de nada.
Sistemas como a ioga eram desenvolvidos para encorajar a meditação e o esvaziamento da mente, e as religiões budista e hindu abraçam o conceito do nada como parte de seus ensinamentos.
Peter Gobets, secretário da fundação holandesa ZerOrgIndia, também chamada de Projeto Zero, que pesquisa as origens do dígito zero, aponta em um artigo sobre a invenção do zero que “o zero matemático (“shunya” em sânscrito) pode ter surgido da filosofia contemporânea de vazio ou Shunyata (uma doutrina budista sobre esvaziar a mente de impressões e pensamentos)”.
Além disso, a nação tem uma antiga fascinação com a mais sofisticada matemática. Matemáticos indianos antigos eram obcecados com números gigantes, contando aos trilhões, enquanto os gregos antigos pararam em cerca de 10 mil. Eles até tinham tipos diferentes de infinidade.
Há uma crença popular de que o astrônomo e o matemático hindu Aryabhata, nascido em 476, e Brahmagupta, nascido em 598, foram os primeiros a descrever formalmente as casas decimais modernas e apresentar regras governando o uso do símbolo zero.
Apesar de Gwalior ser considerado há tempos o local da primeira ocorrência do zero escrito como um círculo, um antigo pergaminho indiano chamado de manuscrito Bhakshali, que mostra um marcador de espaço como o símbolo de um ponto, foi recentemente datado dos séculos terceiro ou quarto.
Ele é agora considerado a primeira ocorrência documentada do zero.
Marcus du Sautoy, professor de matemática da Universidade de Oxford, é citado no site da universidade dizendo que: “A criação do zero é um número por si só, que evoluiu do marcador de espaço como um símbolo de ponto encontrado no manuscrito Bakhsali, e foi um dos grandes avanços na história da matemática. Nós agora sabemos que no século 3 já existiam matemáticos na Índia plantando a semente da ideia que mais tarde se tornaria tão fundamental para o mundo moderno. As descobertas mostram quão vibrantes foram as matemáticas no subcontinente indiano por séculos”.
Mas igualmente interessantes são as razões pelas quais o zero não foi desenvolvido em outros lugares. Apesar de os maias e os babilônicos (e muitas outras civilizações) também terem um conceito do zero como marcador de espaço, não se sabe se a ideia foi desenvolvida como um número para ser usado na matemática em outros lugares além da Índia.
Uma teoria é a de que algumas culturas tinham uma visão negativa do conceito do nada. Por exemplo, houve um tempo nos primórdios do cristianismo na Europa em que líderes religiosos baniram o uso do zero porque eles achavam que, já que Deus está em tudo, um símbolo que representa o nada deveria ser satânico.
Então talvez exista algo conectado na sabedoria espiritual da Índia que tenha dado origem à meditação e à invenção do zero.
Há outra ideia conectada também, que tem um efeito profundo no mundo moderno.
O Vale do Silícia à indiana
Quem se dirige para fora do Aeroporto Internacional de Kempegowda, em Bengaluru, em direção ao centro da cidade, a cerca de 37km de distância, vê várias placas grandes presas de maneira desordenada ao solo da Índia rural.
Essas placas proclamam os nomes dos novos deuses da Índia moderna, as companhias à frente da revolução digital: Intel, Google, Apple, Oracle, Microsoft, Adobe, Samsung e Amazon. Todas têm escritórios em Bengaluru, assim como as empresas de tecnologia locais Infosys e Wipro.
O aeroporto moderno e os sinais brilhantes são os primeiros indicadores de transformações. Antes da indústria da tecnologia da informação chegar ali, ela era chamada de Bangalore e era conhecida como a Cidade Jardim. Agora é Bengaluru, e é conhecida como o Vale do Silício da Índia.
O que começou nos anos 1970 como um parque industrial, Electronic City, até expandir a indústria eletrônica no estado de Karnataka, pavimentou o caminho para a explosão da cidade, que hoje tem vários parques de TI e é o lar de cerca de 40% dessa indústria no país.
Bengaluru pode até superar o Vale do Silício, considerando as previsões de que pode se tornar o maior hub de TI na Terra até 2020, com 2 milhões de profissionais, 6 milhões de empregos indiretamente ligados à TI e US$ 80 bilhões (cerca de R$ 323 bilhões) em exportações.
E tudo isso se torna possível graças ao sistema de numeração binário.
Os computadores digitais de hoje operam no princípio de dois possíveis estados, on e off. O estado on tem o valor 1 enquanto o off foi ligado ao valor 0. O zero.
“Talvez não surpreenda que o sistema de números binários também tenha sido inventado na Índia, nos séculos 2 ou 3 antes de Cristo, por um musicologista chamado Pingala, apesar de seu uso ser para a métrica”, diz Subhash Kak, historiador de ciência e astronomia e professor na Universidade do Estado de Oklahoma, nos EUA.
Os Jardins Botânicos de Lalbagh ficam no centro cultural e geográfico de Bengaluru, um símbolo da antiga Bangalore e o lugar mais recomendado aos turistas para se visitar. Construído originalmente em 1760 com muitas adições posteriores, tinha um ar vitoriano distinto, com 150 tipos de rosas e um pavilhão de vidro feito no fim dos anos 1800 e decorado segundo o famoso Palácio de Cristal de Londres.
Lalbagh é um tesouro em uma cidade que é uma das que mais crescem na Ásia e um lembrete charmoso dos dias em que Bengaluru era um dos locais preferidos de britânicos aposentados durante o período do Raj (colônia).
Eles construíram casas em estilo “cottage” com jardins grandes e passaram a aposentadoria aproveitando o clima temperado e as condições ideais de crescimento da então sonolenta cidade.
Mas a antiga Bangalore está desaparecendo sob as obras infraestrutura e a ambiciosa expansão da cidade. Entre 1991 e 2001, Bengaluru cresceu em 38% e é hoje a 18ª cidade mais populosa do mundo, com 12 milhões de pessoas. O trânsito sem dúvida é o pior da Índia, considerando que o planejamento não acompanhou o desenvolvimento de muitos parques de TI e o grande fluxo de trabalhadores.
O caos e o congestionamento que são a marca das metrópoles da Índia chegam ao máximo em Bengaluru, onde se pode demorar uma hora para se dirigir meros 3 km. Ainda assim, os habitantes continuam sua vida bravamente, morando o mais próximo possível dos campi high-tech – e até dentro deles, em alguns casos – criando start-ups, desenvolvendo softwares e alimentando o mundo com produtos de TI e know-how.
É difícil imaginar o número de chips de computadores e bits e programas que vêm de Bengaluru, o número de computadores e dispositivos construídos e desenvolvidos ali. Mais difícil ainda imaginar o número de zeros do sistemas binários de zero que eles demandaram.
E, ainda assim, tudo isso começou na própria Índia. Do nada.