Terá poder no futuro quem mobilizar o maior número de pessoas

Jeremy Heimans e Henry Timms

O australiano Jeremy Heimans e o inglês Henry Timms falam a língua do mundo corporativo mesmo nos contextos mais informais. Quando a reportagem pede para abaixar o volume do jazz que toca no restaurante quase vazio, para não atrapalhar a gravação da entrevista, Heimans diz: “É… não está agregando muito valor.” Ao que Timms emenda: “Agregaria mais valor se estivesse um pouco mais baixo”. A dupla, no entanto, está longe de representar o status quo ou o discurso empolado das companhias tradicionais.

Muito pelo contrário. De tênis de cano alto e calça jeans, Heimans, em seus cabelos encaracolados e carinha de 20 anos (ele tem 40), é um ativista digital. Ele participou da criação da Avaaz, comunidade que incentiva o ativismo em torno de temas como política e mudança climática, e da GetUp, movimento de engajamento político na Austrália com mais de 1 milhão de membros. Timms, de 41, comanda um centro cultural comunitário em Manhattan, o 92nd Street Y, e é o criador do movimento filantrópico #GivingTuesday.

Eles entendem de movimentos — e discuti-los é um hobby. Não lhes venha resumir a Primavera Árabe apenas como um movimento que ocorreu graças ao Twitter. A revolta das populações no Oriente Médio, segundo eles, tem raízes mais profundas (as mesmas, aliás, que fazem você se frustrar com seus governantes, com seus chefes no trabalho ou mesmo com empresas com as quais você se relaciona). “As pessoas querem ser participantes”, diz Heimans. “Temos uma geração de jovens que está crescendo com a expectativa de participar cada vez mais, e isso num contexto em que as instituições não dão a eles um papel.”

Essa sede por participação é um dos pontos centrais da obra de Heimans e Timms: O Novo Poder — como disseminar ideias, engajar pessoas e estar sempre um passo à frente em um mundo conectado (Editora Intrínseca). O livro traduz o choque entre novo poder e velho poder em curso no mundo hoje. Que poderes são esses? “O velho funciona como uma moeda. É propriedade de poucos. Uma vez conquistado, é guardado com zelo (…). É fechado, inacessível e impulsionado por um líder”, dizem os autores logo no começo da obra. O novo funciona como uma corrente. “É feito por muitos. É aberto, participativo e impulsionado por iguais. É fazer o upload e distribuir.” O velho poder é a Agência de Segurança Nacional (NSA), a Receita Federal, o Prêmio Nobel. O novo é o #BlackLivesMatter, o #MeToo, a Wikipedia, entre outros.

Mas nem sempre, ensinam os autores, o novo é bom. Nem sempre o velho tem de ser jogado fora. Nem sempre uma empresa que tem um modelo do novo poder tem valores do novo poder (exemplo: Uber e Facebook, modelos novos com valores não muito transparentes). Como entender esse novo mundo que se desenha agora é o que a dupla ensina com clareza no livro, já indicado como leitura por algumas escolas de negócios nos Estados Unidos, segundo Heimans. Não espere apenas o bom. A obra é realista e mostra que, independentemente dos valores, o vencedor é aquele que consegue mobilizar o maior número de pessoas a seu favor.

Em passagem por São Paulo, Heimans e Timms falaram a Época NEGÓCIOS, que publicou com exclusividade um capítulo do livro na edição impressa de julho, nº 137. Você pode ter acesso às edições anteriores da revista no Globo+. A seguir, os principais trechos da conversa:

No livro, vocês dizem que não é só a tecnologia que está provocando mudanças no mundo: “A verdade mais profunda é que nós estamos mudando”. Que mudança é essa?
Heimans: As pessoas sentem hoje que podem mudar o mundo e sentem que têm o direito de participar de tudo. O Henry (Timms, o coautor) e eu crescemos num contexto em que existiam algumas poucas redes de televisão. A interação era no máximo com a estação de rádio para a qual você podia ligar e talvez pedir uma música. O adolescente de hoje — no Brasil, nos Estados Unidos, em qualquer lugar — tem acesso a tecnologias que permitem que ele tenha um canal com milhões de seguidores. Pense nisto: pode ser que agora tenha um adolescente dando forma a futuro movimento político a partir de seu quarto; ou criando um crowdfunding para um projeto da escola. Essa dinâmica produziu mudanças. Os jovens crescem com expectativa de serem participantes, mas num contexto em que as instituições e a sociedade não dão a eles um papel.

Vocês dizem que as empresas e os líderes que vão prosperar serão aqueles que conseguirem se aproveitar da energia colaborativa que os rodeia. Como fazer isso?
Timms: Muitas das empresas que se tornaram bem-sucedidas usando o modelo do velho poder continuam fazendo coisas de velho poder. Quando tentam mudar, fazem assim: “Oi, todo mundo aí! Ajude-nos a dar um nome ao nosso novo edifício”. São iniciativas muito pequenas que não mudam em nada o DNA da empresa.

Heimans: A história do Boaty McBoatFace é um grande exemplo. Trata-se de uma instituição antiga (a Natural Environment Research Council) que nunca havia criado uma comunidade de verdade ao redor dela. Aí ela fez uma campanha online pedindo sugestões para batizar um navio. O público votou, e o vencedor foi (o engraçadinho) “Boaty McBoat Face” (foram 124 mil votos, quatro vezes mais que o segundo lugar). No fim das contas, a instituição colocou um nome conservador que já tinha em mente. Eles não queriam que a massa realmente nomeasse o navio. Moral da história: você não há de precisar da massa se não está continuamente engajado com ela, se não tiver cultivado legitimidade. Você pode começar com algo que seja um pouco fora da dinâmica da empresa, mas, se você não traz isso para a estrutura da companhia e não muda o modelo, é improvável que a coisa pegue. A Lego é um exemplo que deu certo. A empresa criou uma estrutura de inovação que incluiu cultura interna e contato externo com uma comunidade de pessoas.

TIMMS (ESQ.) E HEIMANS DIZEM NO LIVRO: “O FUTURO SERÁ UMA BATALHA PELA MOBILIZAÇÃO. AS PESSOAS COMUNS, OS LÍDERES E AS ORGANIZAÇÕES QUE VÃO PROSPERAR SERÃO AQUELAS COM MAIS CAPACIDADE DE CANALIZAR A ENERGIA PARTICIPATIVA DOS QUE ESTÃO À SUA VOLTA — PARA O BEM, PARA O MAL E PARA O TRIVIAL” (FOTO: ROGERIO ALBUQUERQUE)

Como criar essa estrutura?

Timms: Há duas coisas que importam. A primeira é: não dá para ser periférico. Muitos dos executivos seniores das empresas dizem: ah, contrata aí uma pessoa jovem que entende de social media e ela fica por conta (da interação da empresa com o público). Ou seja, a liderança não está nem aí. Não dá. As empresas que fazem isso bem começam pelo topo. Em segundo lugar, as companhias precisam manter os experimentos. No novo poder, quase todos os grandes sucessos vêm de pequenos experimentos.

Heimans: Nosso argumento não é “jogue fora o velho poder”. Nosso argumento é: pegue o melhor de ambos. Veja as conferências TED. Eles têm uma marca que tem prestígio e exclusividade, características do velho poder, além de serem eventos caros. Mas eles permitem que outras pessoas participem do movimento também (com a organização de TEDs locais, tradução de talks, etc.). Fazem isso com uma base sólida no velho poder.

O velho poder, então, pode ser bom.
Timms: Pense nos experts, num cirurgião, num médico que tem anos de experiência. Esse velho poder vai ser sempre importante e sempre necessário. Mas, ao mesmo tempo, vale observar que esses especialistas são a pior versão do velho poder. Eles mantêm as informações com eles mesmos, não compartilham.

Heimans: Pense na mudança climática. A menos que um cientista do clima (expert) advogue que há uma alteração de clima em curso, os negadores, aquelas pessoas que inventam teorias da conspiração para dizer que a mudança climática não é real, vão vencer. Esse é um grande problema hoje. Há pessoas inventando teorias sobre vacinas nos Estados Unidos. Elas estão espalhando rumores que dizem que vacinas não funcionam, fazem mal às crianças… E essas pessoas são mais eficientes que o médico em transmitir suas mensagens (pela internet e aplicativos de mensagem).

É aí que o novo poder não é bom.
Heimans: Sim. A pergunta é: quem põe a mão nisso? Quem vai dominar essas ferramentas primeiro?

Como estudiosos do mundo online, vocês acham que essa polarização das discussões na internet tende a aumentar?
Heimans: Sim. Infelizmente, o que é mais provocativo mobiliza mais. Num mundo que é definido por mobilização, quem mobiliza melhor ganha. Se eu disser para você “vamos ser sensíveis a essa situação, por favor”, você não vai ficar empolgada. Mas, se eu digo “vamos impedir que esse otário faça isso!”, isso vai mobilizar. A dinâmica das mídias sociais favorece as pessoas que inventam coisas e que querem despertar emoções. E isso é muito mais amplificado agora do que quando apenas alguns eram donos da mídia. Temos que trabalhar com essa realidade e pensar em como lidar com isso.

Hoje, demanda-se que as instituições sejam cada vez mais transparentes. O livro cita um caso de um político, candidato ao governo do Arizona em 2018 (Noah Dyer), que incluiu em seu site uma seção chamada “Um Novo Patamar de Transparência”. Lá, ele informa que “teve experiências sexuais profundas e casuais com todo tipo de mulher (…) Fez sexo em grupo com mulheres casadas. Enviou e recebeu textos e fotos íntimas e, de vez em quando, gravou vídeos durante o sexo.” Essa transparência radical é necessária?

Timms: Eu acho que toda organização deveria antecipar a transparência radical. Nós encorajamos as empresas a “occupy yourself” (“ocuparem-se a si mesmas”). Muitas informações vazam hoje… Se você é uma empresa que quer manter um segredo por muito tempo, isso vai ser muito difícil hoje. Antecipar a transparência é pensar que aquilo (aquele segredo) pode a qualquer hora bater à sua porta. É óbvio que algumas coisas não serão e não devem ser reveladas. Por exemplo, a Coca-Cola não vai revelar sua fórmula.

O livro menciona o início da inovação aberta na Nasa, quando surgiram dois grupos na empresa: um que enxergava que seria interessante a colaboração vinda de fora (composto pelos que pensavam “o mundo é meu laboratório”) e um totalmente fechado (os do time “o laboratório é meu mundo”). O que explica essa diferença de comportamento entre os funcionários? É uma questão de idade?

Timms: Tudo gira em torno de identidade profissional. Não é uma questão de idade. Não é uma questão de know-how técnico. É uma questão de como você pensa em você mesmo e no seu trabalho. Um grupo de cientistas adorava a ideia de receber palpites de fora. Eles enxergavam os pitacos externos como contribuições que poderiam torná-los cientistas melhores. Já o outro grupo de cientistas, quando você chegava para conversar com eles, você os ouvia sempre dizendo das muitas graduações que eles têm. “O meu primeiro PhD foi no MIT, o meu segundo foi…” Eles viam a possibilidade de outras pessoas estarem envolvidas no trabalho deles como um ataque à identidade profissional. O grande insight disso é: não é gente velha x gente nova. Não é gente analógica x gente digital. A questão é: você consegue cultivar sua identidade profissional e se sentir mais poderoso ao abraçar a colaboração que vem de fora ou você a vê como ameaça?

Há espaço nas empresas hoje para funcionários que acreditam que “o laboratório é meu mundo”?

Timms: Claro, se ele for muito brilhante… Se o sujeito for um Jony Ive (o Chief Design Officer da Apple)… Mas eu não recomendaria isso como uma direção de carreira. Até para o próximo Jony Ive será difícil ter essa postura… A ideia de que todas as boas ideias vão continuar vindo de um só cérebro ano após ano me parece pouco provável.

Vocês dizem no livro que o nível de confiança nas pessoas comuns aumentou. Acredita-se mais em amigos e colegas do que em especialistas ou instituições. O que explica isso?

Heimans: Lembra do exemplo que a gente deu no início do livro sobre Minecraft? O Minecraft é um jogo que conta com a cocriação dos usuários, que em sua maioria são jovens. Eles estão criando mundos, juntos, para eles mesmos. Neste contexto, o que se aprende é: meus amigos são mais importantes do que quem controla o jogo ou as instituições. Os jovens estão crescendo com essa mentalidade. Eles se tornam hostis às instituições porque elas são indiferentes a eles. Não se cria nada com elas.

O livro mostra que o velho poder e o novo poder estão colidindo no ambiente de trabalho. E a razão para isso é que as empresas não conseguiram criar a dinâmica de feedback que a gente vê nos apps (por exemplo, as aprovações em forma de likes constantes). Qual é o problema: as empresas são ruins em dar feedback ou os millennials estão muito exigentes?

Timms: Acho que ambos. De um lado, você tem um chefe que dá um feedback uma vez ao ano. Do outro, você tem redes sociais que proporcionam feedbacks instantâneos. Há uma lacuna muito grande aí. O que começa a surgir agora são tecnologias que ajudam a encurtar essa distância. Softwares que permitem que as pessoas deem seus palpites sobre projetos e proporcionam experiências mais gamificadas. A empresa que realmente achar que o melhor jeito de melhorar performance é falar com as pessoas uma vez por ano é louca. Agora, a grande diferença entre o ambiente de trabalho e o Instagram é que o Instagram não quer que você melhore. Ele só quer que você esteja no Instagram.

A única coisa que o Instagram se importa é que você passe mais tempo no Instagram. Então, ele vai fazer o que for possível para manter você lá dentro. Acho que os millennials têm de entender as diferenças também, sabe? Têm de perceber quantos feedbacks falsos eles têm nas redes… Aliás, nós somos todos seduzidos por esses feedbacks falsos. Não são feedbacks genuínos (os likes e comentários das redes sociais).