O historiador israelense Yuval Noah Harari aconselha a nunca subestimar a estupidez humana. Esse professor da Universidade Hebraica de Jerusalém formado em Oxford se tornou, aos 42 anos, o pensador mais popular do planeta e autor quase imbatível de frases incisivas. A dica é uma das muitas que recheiam seu novo livro, “21 uma Lições para o século 21”, lançamento da Companhia das Letras. É o terceiro ensaio de Harari sobre a civilização. A pré-venda mundial de 5 milhões de exemplares já o credencia como best-seller.
O êxito antecipado se deve a dois ensaios de sua autoria que se tornaram sucessos internacionais e cujos títulos dão a medida da sua ambição: “Sapiens — uma breve história da humanidade” (2011) e “Homo Deus — uma breve história do amanhã” (2016). O primeiro explica como um simples macaco dominou o mundo em dez milênios. Um de seus argumentos é o de que a civilização e a escrita não surgiram da agricultura, mas da prática religiosa. O segundo viaja ao futuro para demonstrar que os seres humanos irão se tornar deuses e controlar a natureza e a consciência — até serem controlados por algoritmos.
Uma das ideias de Harari que escandalizaram a comunidade científica é a demonstração de que o cérebro pode ser preservado a partir de implantes em outros organismos, não necessariamente orgânicos. O neurocientista português António Damásio qualificou Harari como um filósofo “pós-humanista”, porque sustenta uma “interpretação algorítmica da humanidade” e elabora uma visão mecanicista da evolução.
O novo livro fecha o ciclo ao abordar o presente. Harari confronta seus críticos expondo ideias para salvar o homem da completa desumanização. Segundo ele, é preciso se livrar da estupidez em que está mergulhado, reunir as aquisições científicas e filosóficas válidas e se preparar para mudanças que podem em breve causar a perda da própria noção de humanidade.
Segundo ele, o fundamento ético humanista no qual o mundo se apoiou no século XX foi abalado pela queda de seus três grandes sistemas políticos e econômicos. Fascismo, comunismo e, finalmente, democracia liberal foram substituídos por movimentos xenófobos, o nacionalismo de Vladimir Putin e o conservadorismo isolacionista de Donald Trump. Mesmo aqueles que se exibem como gurus perdem a credibilidade num instante. É o caso de Mark Zuckerberg, presidente do Facebook, que pregou a restauração das comunidades por meio das redes sociais, mas em seguida foi flagrado vendendo dados de seus assinantes para a Cambridge Analytica, uma empresa de manipulação eleitoral.
Assim, decepcionado, o Homo sapiens se torna quase incapaz de dar sentido ao mundo que criou, sem distinguir realidade de ficção. “Vivemos a era da perplexidade”, afirma Harari. “Ao mesmo tempo que as pessoas perdem a fé na política global, a fusão da biotecnologia e da tecnologia da informação nos coloca diante das maiores mudanças com que o gênero humano já se deparou.”
Apesar dessas circunstâncias não muito promissoras, “21 Lições…” é um excelente livro. Em “Sapiens”, cujo subtítulo é “uma breve história da humanidade”, Harari escarafunchou o passado. Em “Homo Deus”, cujo subtítulo é “uma breve história do amanhã”, ele conjecturou sobre o futuro. Em “21 Lições…”, que não tem subtítulo, se debruça sobre o presente, diagnosticando problemas atuais e propondo, quando cabível, soluções.
Os temas abordados satisfazem a todos os gostos: tecnologia, política, religião, violência, educação, “fake news”, justiça, ficção científica e vários outros. Há momentos bem pessoais, como aquele em que Harari fala sobre sua homossexualidade, e outros que, não resisto em dizê-lo, lembram livros de autoajuda, como os capítulos em que ele faz loas à humildade e à meditação.
Tirando essas excentricidades, reencontramos o melhor Harari, que consegue equilibrar clareza, argúcia e bom senso com uma escrita envolvente, repleta de anedotas memoráveis. Quem já leu as duas obras anteriores experimentará alguma sensação de “déjà vu”, uma vez que as ideias-mestras dos outros livros reaparecem neste.
Na verdade, “21 Lições…” retoma vários pontos de “Homo Deus”, notadamente na questão da tecnologia ameaçando empregos e a própria identidade humana. Mas, o faz de forma bem mais ponderada, sem incorrer nas especulações mais selvagens que marcaram a obra anterior. O horizonte aqui não é o do futuro longínquo, mas o dos próximos anos.
Meu capítulo favorito é o das “fake news”. Ali, Harari mostra que, embora o termo esteja em evidência atualmente, não constitui novidade na história de nossa espécie. Ao contrário até, se há algo que define o Homo sapiens, é justamente sua incrível capacidade de criar ficções e acreditar nelas. Não importa tanto se a notícia falsa é a última mentira de Donald Trump, o valor do dólar (que objetivamente não passa de um pedaço de papel) ou o mito de fundação de um país, crenças comuns compartilhadas são o segredo da cooperação entre humanos e o que nos distingue de outros mamíferos.
Algumas vezes, as “fake news” duram um período breve de tempo e não chegam a ter aceitação universal, como a versão de Putin de que a Rússia não arma nem apoia os separatistas ucranianos. Outras vezes, persistem por milênios, como é o caso das religiões. E o fato de serem ficções não impede que produzam efeitos muito reais, como se vê nos milhares de mortos nos combates no leste da Ucrânia ou nas experiências religiosas dos fiéis, que muitas vezes se dispõem a matar e morrer pelas “verdades” de sua fé.
As soluções propostas por Harari para lidar com o problema são: procure sempre fontes confiáveis de informação, mesmo que precise pagar por isso, e nunca deixe de recorrer à literatura científica relevante. É provavelmente só o que podemos fazer mesmo, mas, se alguém estava em busca de lições arrebatadoras, fica um ar de platitude anticlimática.