Há um ano, o Sistema Solar foi visitado por um objeto com formato de charuto que chegou a estar a 30 milhões de quilómetros da Terra e depois seguiu viagem, para nunca mais ser visto. Oumuamua, que significa “um mensageiro pioneiro vindo de longe”, tornar-se-ia no primeiro objeto vindo do espaço interestelar alguma vez detetado pelas nossas bandas e tinha uma característica que nunca tínhamos visto: andava depressa de mais. Agora, um estudo do Centro de Astrofísica de Harvard Smithsonian diz que ele pode estar a ser empurrado pela luz que vem do Sol. Ou então que é uma nave espacial de origem alienígena. Pedimos a opinião a dois astrónomos sobre estas conclusões. Um desvenda que a credibilidade do artigo está em xeque porque o autor tem conflito de interesses. Outro sublinha que a ideia “causa estranheza”, mas é “possível” embora “improvável”.
A primeira hipótese é baseada num fenómeno chamado pressão da radiação solar, explica Miguel Gonçalves, astrónomo e coordenador nacional da Sociedade Planetária, ao Observador: “Os fotões são as partículas que constituem a energia eletromagnética, incluindo a luz. Quando esses fotões embatem numa superfície há uma transferência de quantidade de movimento entre o fotão e essa superfície. Essa transferência dá dinâmica ao objeto e permite-lhe acelerar. É uma aceleração gradual, mas que vai aumentando com o tempo, porque é uma fonte inesgotável”.
Esse é um fenómeno que já observámos noutros corpos celestes como em asteroides, recordou ao Observador o astrónomo Nuno Peixinho, do Centro de Investigação da Terra e do Espaço da Universidade de Coimbra: “A pressão da radiação solar acelera a rotação de objetos e isso já foi demonstrado em asteroides. É uma coisa muito lenta, mas que foi demonstrado por um painel de cientistas que lhe chamou efeito YORP“, contou ele. Quando esse efeito atua, o aquecimento provocado pela incidência da luz solar na superfície dos asteroides pode motivar movimento à medida que o calor é libertado. E isso já foi visto em alguns (poucos) asteroides da cintura que orbita o Sol entre Marte e Júpiter.
Esta ideia é possível e é plausível porque o Oumuamua tem uma velocidade muito alta e uma órbita demasiado inclinada: a maior parte da comunidade científica aceita que “nenhum objeto dentro do Sistema Solar podia aproximar-se do Sol à velocidade e com a órbita” que registamos para esse “charuto” espacial quando ele passou perto de nós, a 19 de outubro de 2017, explica Miguel Gonçalves.
O mais expectável é que este objeto tivesse uma cauda como os cometas — algum jato que funcionasse para o Oumuamua como o nitro para um carro — mas não encontrámos nada que justificasse a estranha aceleração dele, sublinha Nuno Peixinho: “Quando começam a evaporar, à medida que se aproximam do Sol, os cometas podem acelerar ou desacelerar porque os gases saem como jatos. Mas não observámos nenhum fenómeno desse género no Oumuamua“. A pressão por radiação solar é uma resposta plausível para este corpo interestelar e que os autores do estudo sustentam com matemática complexa espalhada ao longo de três das cinco páginas do relatório.
Nas últimas duas páginas, no entanto, eles colocam a segunda hipótese, que é muito mais exótica. Segundo os autores do estudo, Oumuamua pode ser “um cargueiro flutuando pelo espaço interestelar como destroços de um equipamento tecnológico avançado“. Ou então “uma nave espacial completamente operacional enviada intencionalmente para as vizinhas da Terra por uma civilização alienígena”. Essa tecnologia avançada seria em tudo igual a velas solares, um tipo de propulsão que utiliza pressão de radiação para gerar aceleração. E é nessa especulação que está a maior parte dos problemas deste estudo.
As velas solares funcionam de forma semelhante às velas dos barcos: quando os fotões que compõem a luz solar atingem os espelhos dessas velas solares conseguem empurrá-las, tal como a pressão da radiação solar empurra alguns corpos celestes na Cintura de Asteroides. Essa é um tecnologia que já está a ser desenvolvida na Terra e que a Sociedade Planetária pretende testar no espaço no próximo lançamento de um Falcon Heavy da SpaceX. No caso do Oumuamua, na teoria do estudo saído de Cambridge, o objeto estaria coberto por “uma camada de pó interestelar que é composto por materiais ricos em orgânicos” que funcionava como uma vela solar, lê-se no estudo.
O grande problema é que Abraham Loeb, o autor principal do estudo, faz parte da direção das Iniciativas Breakthrough, um projeto de 100 milhões de dólares que tem por objetivo procurar evidências de inteligência extraterrestre, nomeadamente através de tecnologias como as velas solares. Isso é “um bocado desagradável” e “demasiado polémico”, considera o coordenador nacional da Sociedade Planetária: “Acho que estamos perante um conflito de interesses. Este trabalho foi em parte financiado pela Iniciativa Beakthrough, que apoia uma expedição cientifica com sondas pequeninas que utilizam velas solares para chegar à estrela mais próxima. O investigador principal faz parte da direção desse projeto, portanto coloca como hipótese uma coisa que lhe dá jeito enquanto diretor“.
Outro problema é que ele não foi revisto por outros cientistas, algo que é fundamental para dar mais solidez e fiabilidade a um estudo: o documento, intitulado “Pode a pressão da radiação solar explicar a aceleração peculiar do Oumuamua?”, foi publicado no repositório arXiv, que não exige essa “revisão pelos pares”. Apenas permite comentários da comunidade científica. E até isso foi pensado, acredita o astrónomo da Sociedade Planetária: “Há aqui claramente uma estratégia de colocação de uma especulação propositada de um relatório que não foi sujeito ao processo científico normal para criar barulho”.
A juntar a tudo isto, um olhar mais atento à bibliografia que suporta o estudo desvenda mais um problema: algumas das ideias rebuscadas para este relatório foram retiradas de outros estudos do mesmo autor principal ou de blogs em que ele participa. Ao citar outros cientistas para suportar as ideias que defende no estudo, Abraham Loeb cita-se a ele próprio. “Até do ponto de vista do marketing cientifico foi bem feito. O estudo começa com gráficos e equações e no final lança uma bomba. Mas não tem argumentos que sustentem a possibilidade da vida alienígena”, aponta Miguel Gonçalves.
Os próprios autores do estudo admitem que a possibilidade da nave espacial carece de sustentação — uma sustentação que vai ser difícil de obter porque Oumuamua nunca mais vai passar por nós novamente: “Como é tarde de mais para observar o Oumuamua com os telescópios atuais ou persegui-lo com foguetões químicos, a sua origem provável e propriedades mecânicas só podem ser decifradas procurando outros objetos parecidos no futuro”, pode ler-se nas últimas frases do relatório. O astrónomo Nuno Peixinho lembrou que, em ciência, “uma boa teoria é aquela que contém nela a possibilidade de ser falsificada”.
Há como provar esta teoria?
Esta teoria da visita de extraterrestres não oferece essa possibilidade — pelo menos não tão cedo: “Eu também poderia dizer que, afinal, não vivo em sociedade. Afinal sou a única pessoa em todo o universo e tudo o que eu vejo é uma ilusão minha e muito bem construída. Não tenho forma de arrebatar completamente essa hipótese, portanto sei que essa é uma possibilidade em cima da mesa. Também sei que não é a mais plausível, mas como posso demonstrar o contrário? Não posso e a matemática bate certo, embora ela não ateste a total veracidade da teoria”, explica Nuno Peixinho.
Resta-nos esperar. Assim como os sismólogos continuam a dizer que não foi o número de sismos que aumentou no planeta, mas sim a nossa capacidade encontrá-los, também se espera que os nossos telescópios evoluam cada vez mais para que corpos como o Oumuamua sejam encontrados com regularidade: “De acordo com o que sabemos hoje sobre a dinâmica dos sistemas planetários, não é estranho que possa haver troca de objetos entre eles. Sabemos que há estrelas que podem apanhar planetas que venham de outras estrelas, por isso não é totalmente estranho que venham cá parar coisas de outros lados. Nós só temos telescópios com grande capacidade e uma rede com grande precisão há relativamente pouco tempo. Somos uma espécie muito rudimentar nesse sentido. Não ficaria admirado que daqui a alguns anos assistíssemos à deteção de outros corpos”, considera Miguel Gonçalves.
Por enquanto sabemos apenas que não há maneira de negar a possbilidade de Oumuamua ser uma nave espacial extraterrestre, mas também não há possibilidade de dizer que o é com certeza absoluta. É uma teoria muito remota, isso com certeza.
Certo é que é importante desvendar mais mistérios de Oumuamua e encontrar mais objetos como ele. É que pode ser neles que se esconde o segredo para perceber a evolução do nosso Sistema Solar, avisa Miguel Gonçalves: “Neste momento, o único sistema planetário que conhecemos — e mesmo assim com grande grau de incerteza — é apenas o nosso. Já conhecemos mais de três mil exoplanetas, ainda sabemos pouco sobre a construção de sistemas planetários, como se criam, como evoluem. Por exemplo, sabemos que as órbitas dos nossos planetas nem sempre foram assim. Júpiter já andou por estas bandas e foi puxado para Saturno. Por isso, informações de outros sistemas com outras funcionamentos, corpos celestes e constituições químicas são peças de um puzzle“.