O interesse dos homens pelos novos robôs sexuais é a última etapa de uma longa história de desumanização das mulheres, que começou na escravidão e foi perpetuada pela pornografia. Mas qualquer sugestão de que isso seja aceitável deve ser rejeitada pelas nossas democracia.
Nosso mundo parece refletir cada vez mais essa ficção. Em muitos países (especialmente no Japão e nos Estados Unidos), aumenta o número de pessoas que dão cada vez mais preferência à interação por meio de máquinas, em detrimento dos relacionamentos face a face. Nesse cenário, robôs projetados especialmente para o sexo estão sendo promovidos como substitutos para as mulheres. Segundo alguns defensores desses “robôs sexuais”, é uma questão de tempo – até 2050, no máximo – para termos casamentos entre robôs e seres humanos. Nesse futuro não tão distante, as mulheres serão opcionais para os homens: eles poderão simplesmente colocar um robô no seu lugar.
Entrevista com a Dra kathleen richardson
A ascensão dos robôs sexuais é algo com que devemos nos preocupar? E é verdade que os homens podem substituir seus relacionamentos com mulheres por bonecas robóticas? Aqueles que defendem os robôs-mulheres argumentam que o desejo dos homens é diferente, e que eles simplesmente querem mais sexo do que as mulheres. Alguns homens me escrevem para falar sobre isso. Eles me dizem que as mulheres são exigentes demais e que, para eles, um robô sexual seria uma alternativa interessante. Entendo que, para qualquer pessoa que já se apaixonou e não teve esse amor correspondido, a experiência pode ter sido dolorida. O amor é algo que não pode ser imposto, e isso provoca sofrimento. Nesse sentido, poderíamos pensar nos argumentos masculinos em favor dos robôs como artifícios para enfrentar a dor causada pela rejeição e pelo amor não correspondido. Com certeza, isso é parte da história – mas não é a história toda.
O que está por trás do interesse de um grande número de homens por robôs sexuais é a desumanização das mulheres, que é reproduzida e perpetuada na pornografia e na prostituição. Tanto a pornografia quanto a prostituição vendem uma ideia das mulheres que não é real. Nessas duas formas de entretenimento sexual, os homens se sentem poderosos, porque têm domínio total sobre a mulher. Mas, na vida real, isso não é possível, por um fato muito simples:
mulheres são seres humanos, e não ferramentas para serem usadas por seus mestres.
Se não existissem a pornografia e a prostituição, é pouco provável que os homens estivessem interessados em robôs sexuais. Em vez de enxergarmos esse tipo de robô como uma consequência natural da evolução da tecnologia, devemos entender que ele é apenas mais uma consequência da desigualdade que sempre existiu entre homens e mulheres. A ascensão dos robôs sexuais nos mostra que a igualdade de gêneros não existe, e que o uso da mulher como “objeto sexual” ainda domina o imaginário masculino.
Uma prova de que estamos longe de alcançar a igualdade é a campanha #eutambém, que tomou o mundo de assalto nos últimos meses. O fato de que existem milhões de mulheres relatando suas experiências de assédio sexual é muito significativo. Não estamos falando de um toque na perna ou de um olhar indesejado; estamos falando em apalpadas, exposições indecentes e estupro. Homens que assediam, atacam e estupram mulheres agem sob a percepção de que elas são objetos que devem ser usados para a gratificação sexual dos homens. Exatamente como acontece na pornografia e na prostituição, as formas mais extremas de desumanização das mulheres.
Para entender as origens dessa desumanização, precisamos voltar um pouco ao mundo antigo, e à obra do filósofo Aristóteles. Na Grécia antiga, os homens que pertenciam à nobreza tinham poder sobre seres de status inferior: homens das classes sociais mais baixas, mulheres e crianças. Era, em última instância, um mundo construído sobre a ideia de senhores e escravos. Aristóteles, considerado por muitos como “o pai da ética”, escreveu sobre os relacionamentos da época: segundo ele, pessoas com mais status, recursos e poder (os cidadãos do sexo masculino) teriam o direito de controlar outros com menos poder (escravos, mulheres e crianças).
Hoje, muitos filósofos de universidades europeias e americanas usam o trabalho de Aristóteles para falar sobre os relacionamentos humanos – o que eu considero decepcionante. A menos que você seja racista ou sexista, os textos do filósofo grego jamais deveriam ser citados como modelo de relações igualitárias. Em sua obra Política, Aristóteles afirmou sobre os escravos: “Existem ferramentas animadas e inanimadas… um escravo é uma espécie de propriedade viva”. Se, para Aristóteles, escravos, mulheres e crianças eram propriedades, qual seria o efeito disso sobre os relacionamentos humanos? Situações degradantes, onde a vida de algumas pessoas vale menos que a de outras.
Como ensina a história da humanidade, para que um grupo de pessoas seja capaz de dominar outro grupo, é preciso haver o suporte de uma filosofia de desumanização. Nesse sentido, podemos dizer que Aristóteles é o pai da desumanização, e não da ética. Sua filosofia serviu para legitimar a exploração de mulheres, crianças e escravos da cidade de Atenas. Mais tarde, outros sistemas políticos usariam os mesmos conceitos de classe, raça e privilégio sexual para reinventar a desigualdade ateniense. Nobres foram substituídos por outros tipos de cidadãos “superiores”, que exerceram seu poder sobre homens de camadas sociais mais baixas, homens negros, mulheres brancas e mulheres negras.
A prostituição e a pornografia são uma herança direta das sociedades escravagistas. Naquele tipo de organização social, o senhor podia se relacionar com qualquer escrava da maneira que bem entendesse. Podia estuprá-la ou até mesmo matá-la. Os donos de escravos nunca eram responsabilizados, porque se tratava de uma via de mão única, em que só a perspectiva do proprietário de escravos era valorizada. Como diria Aristóteles, “um escravo é não apenas escravo de seu senhor, mas pertence a ele totalmente, enquanto o senhor é o senhor de seu escravo, mas não pertence a ele”.
Nos dias de hoje, o poder dos homens sobre as mulheres é perpetuado de muitas formas: por meio do casamento, do poder econômico ou político, ou da força física. Perpetua-se também o mito de que os homens não precisam das mulheres, e podem sobreviver sem elas. Mas a verdade é que nenhum ser humano pode existir ou sobreviver sem o outro. Nenhum homem pode nascer sem uma mulher, e nenhuma mulher pode nascer sem um homem. É uma relação de igualdade. Infelizmente, a interdependência entre homens e mulheres tende a ser ignorada pelos homens que enxergam as mulheres como menos que humanas.
Não existe desigualdade natural entre homens e mulheres, assim como não existe desigualdade natural entre pessoas negras e brancas. Essas são ficções criadas pelos poderosos e seus asseclas na filosofia. Se permitimos que as pessoas que têm mais poder dominem e controlem as que têm menos, o resultado é uma forma de relacionamento inerentemente assimétrica, hierárquica e instrumental. Se permitirmos que a pornografia e a prostituição dominem a percepção dos homens sobre o sexo feminino, o resultado será um tipo de sexo completamente desligado da experiência humana.
Por que tantos filmes de ficção científica e cientistas ligados à robótica e à Inteligência Artificial sugerem que os homens podem viver sem travar relacionamentos com outros seres humanos, como acontece no filme Substitutos? Quem melhor captou a mentalidade da nossa era foi a escritora e filósofa americana Ayn Rand, defensora do individualismo americano. “O homem – qualquer homem – é um fim em si mesmo; ele deve viver para si mesmo, sem se sacrificar por outros, ou sacrificar os outros para os seus fins; ele deve trabalhar unicamente para os seus interesses pessoais, e o maior propósito moral da sua vida deve ser alcançar a sua própria felicidade.”
Segundo essa visão, o homem não deve nada a ninguém, e os sentimentos de camaradagem, solidariedade ou compromisso com outros seres humanos são uma perda de tempo. Em meu trabalho, chamo isso de mito do individualismo egocêntrico – mas não é muito diferente do que acontece no corporativismo americano. Em culturas onde a empatia e o sentimento de comunidade são rejeitados em nome do “cada um por si”, a distinção entre uma pessoa e uma coisa tende a desaparecer. Nesse sentido, faria diferença se relacionar com uma pessoa ou com um robô?
Para os defensores dos robôs sexuais, em um futuro próximo essas máquinas se tornarão tão avançadas que não serão distinguíveis de mulheres reais. Com isso, o interesse dos homens por esses substitutos sexuais tende a crescer – quanto maior a semelhança entre uma representação de nós mesmos e a realidade, maior o nosso interesse. E, para alguns homens, uma boneca com o formato de um corpo feminino corresponde a 90% do que ele espera de uma mulher.
A desumanização das mulheres fica ainda mais clara quando comparamos os argumentos em defesa dos robôs sexuais com os usados em defesa dos carros autônomos. Recentemente, um vice-presidente de uma companhia que fabrica esse tipo de carro me disse que “as pessoas são qualificadas demais para dirigir carros”. Quando perguntei o que ele queria dizer, ele me explicou que, depois de algum tempo, dirigir carros torna-se automático. Mas seria possível usar o mesmo argumento em relação aos homens e seus robôs sexuais? Podemos dizer que “os homens são qualificados demais para fazer sexo com as mulheres”? Caso a resposta seja positiva, isso significaria que hoje os homens se relacionam com as mulheres da mesma maneira que um motorista se relaciona com seu carro. Carros não têm sentimentos ou experiências. São apenas ferramentas para serem usadas. Você pode tratá-los como quiser.
Mas pessoas e ferramentas não são intercambiáveis. Ou são? Nos sistemas escravagistas, escravos e mulheres não eram considerados seres humanos. Na pornografia e na prostituição, a figura feminina é totalmente desumanizada. Mas qualquer sugestão de que isso seja aceitável deve ser rejeitada em nossas democracias políticas contemporâneas. As mulheres são iguais aos homens, e não inferiores a eles. Homens que desejam robôs sexuais estão, em última instância, desmentindo a humanidade das mulheres.
Eu acredito que podemos fazer melhor que os senhores, colonialistas, racistas, fascistas e sexistas do passado. Não deixemos que essa visão domine as relações humanas ou o modo como desenvolvemos as tecnologias robóticas. Vamos construir algo melhor juntos, como homens e mulheres.