Reconhecimento facial já é realidade no Brasil

Não são apenas as maiores empresas de tecnologia do planeta que conhecem seu rosto como se fosse a palma da mão delas. Algo semelhante já ocorre no Brasil em aeroportos, meios de transporte como ônibus e metrô, lojas, hotéis e até na hora de tirar o título de eleitor. O motor disso são técnicas de reconhecimento facial, que estão engrenando por aqui e já chamam a atenção do Ministério Público.

O mais novo adepto do recurso foi o SPC Brasil, que passou neste mês a oferecer a lojas um jeito de confirmar a identidade de clientes a partir do rosto deles. A foto da face dessas pessoas é comparada com imagens presentes em um banco de dados, que, segundo a companhia, já nasce com 30 milhões de rostos. O objetivo é reduzir a possibilidade de fraude: garantir que a loja conceda crédito ao consumidor e não a um golpista usando a identidade dele e evitar que o cliente tenha o cartão usado por alguém tentando se passar ele.

A adoção tem aumentado no país, concordam executivos de empresas que fornecem essa tecnologia consultados pelo UOL Tecnologia. “Houve uma intensificação pela diversidade da tecnologia que ficou mais apropriada para o mundo civil. A renovação do parque de câmeras, que são colocadas em tudo quanto é lugar, também facilita o reconhecimento facial”, diz Cristiano Blanez, da NEC.

Tem muita câmera, mas elas estão todas no teto, ou seja, tem muita imagem da testa das pessoas, não do rosto

Fabrizio Vargas, líder de negócio da Biomática

A empresa já trabalhou em projetos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), bancos e governo estadual de Goiás. Para ele, os smartphones foram os motores da decolagem do interesse pelo reconhecimento facial. “Tanto reconhecimento facial quanto biometria de impressão digital já estão no mercado há dez anos, mas só agora, com uso disso no ‘mobile’, é que virou escolha de primeira linha”, comenta. De fato, diversos celulares receberam leitores de impressão digital, que são uma alternativa às senhas alfanuméricas, e outros já até trocam esses sensores pelos de reconhecimento facial.

Apesar de a leitura de rostos da SPC Brasil ter chamado atenção, a iniciativa não é nova entre entidades protetoras de crédito. A CredDefende já faz isso desde o começo do ano passado. Ela usa tecnologia desenvolvida pela NEC, a mesma empresa que fornece o reconhecimento facial presente em um dos lugares abaixo da suspeita dos mais incautos: os aeroportos internacionais do Brasil.

Caçada no aeroporto

Implantado pela Receita Federal em 2016, o sistema esquadrinha os rostos de quem desembarca de voos internacionais à caça de suspeitos de cometer irregularidades. O objetivo é destinar apenas eles e não todos os passageiros a uma inspeção mais detalhada.

Divulgação/NEC

Ferramenta de reconhecimento facial da japonesa NEC está presente em aeroportos brasileiros.

Antes de pipocar na tela do computador do agente da Receita um aviso para abordar um indivíduo, uma série de operações ocorrem nos bastidores. Até isso ocorrer, o sistema da Receita já analisou renda declarada, ocupação, frequência e natureza de viagens de todos os passageiros presentes no voo, além de associar aos dados os rostos de todos eles. A partir daí, seleciona os que apresentam incongruências. Também já checou se essas pessoas constam em listas de procurados por tráfico internacional de drogas, lavagem de dinheiro, comércio clandestino de pedras preciosas ou obras de arte. Se o rosto bater com o de suspeitos, a luz vermelha acende.

Na hora de embarcar, o reconhecimento facial também é empregado. Essa ferramenta, porém, é da Polícia Federal que a usa para identificar se o rosto do passageiro bate com a imagem do passaporte. O sistema também é diferente, da alemã Cognitec.

Reconhecimento facial

Só que algo trivial para a maioria dos seres humanos, reconhecer alguém a partir do rosto não é algo tão simples. No sistema da NEC, por exemplo, um algoritmo analisa as imagens captadas pelas câmeras para identifica mais de 80 pontos únicos no rosto da pessoa (coisas como distância entre nariz e olhos, marca e cicatrizes, contorno da face, formato da extremidade do rosto etc). Ele também faz uma simulação em 3D de como o rosto é em diversas poses.

Essas informações são transformadas em um arquivo que descreve a imagem. A partir daí, é esse “número de RG facial” que é comparado as descrições das imagens presentes em um banco de dados, que, além disso, trazem dados como nome e outros detalhes para identificar o sujeito.

Do voto ao banco

Essa lógica está presente na liberação de certificados digitais e até na emissão de títulos eleitorais pelo TSE. Além de coletar impressões digitais, o órgão também tira fotos dos eleitores para afastar fraudes.

“O caso mais famoso do é o de uma pessoa, que tinha tirado 52 títulos de eleitor. O sistema comparou todas as biometrias dela e notou que ela tinha 52 RGs e 52 CPFs”, conta João Weber, gerente de projetos da Griaule, que desenvolveu o sistema do TSE. O caso ocorreu antes de 2014, quando a corte começou a coletar dados biométricos dos eleitores. “Hoje em dia, a base do TSE conta com 90 milhões de pessoas e é a maior do Brasil e uma das maiores do mundo.”

Além de equipar os totens de migração automática da PF, a Cognitec também é a fornecedora do reconhecimento facial de algumas fintechs, como o banco Neon. Para abrir contas na instituição, os clientes têm de mandar selfies. A imagem é cruzada com uma base de dados para assegurar a autenticidade da identidade. Fora do Brasil, a alemã tem parceira com a Visa. “Se ela detecta uma compra com seu cartão fora do seu padrão, em vez de te ligar, ela manda uma notificação para o seu celular, pedindo, ‘Se é você mesmo que está fazendo isso, autentique com uma selfie'”, explica Marcello Perrotta, revendedor da empresa no país.

Busão

Além de aeroportos e lojas, o busão também já foi invadido por leitores de reconhecimento facial. Os moradores de Porto Alegre já convivem com essa tecnologia desde o fim de 2017, quando os consórcios de transporte urbano instalaram câmeras próximas ao leitor dos cartões usados para pagar a passagem. A ideia é evitar que pessoas mal-intencionadas usem bilhetes de pessoas com acesso especial, como idosos e estudante.

Ainda em fase de teste, a rede de hotéis Accord colocou seu sistema em funcionamento com um objetivo diferente. A ideia é reconhecer um hóspede recorrente assim que ele pisar no hall da entrada para dar um tratamento VIP a ele.

Detecção facial

Nem toda tecnologia que usa imagem de rostos pode ser classificada como reconhecimento facial. Algumas delas não passam de detecção facial, que é a mera identificação de que há um rosto em uma dada imagem. Fazer isso já é um desafio e exige algoritmos bastante refinados. Geralmente, esses códigos também são capazes de estimar idade, gênero, cor do cabelo, presença de óculos, humor e até etnia da face identificada.

Esse tipo de técnica é o que foi anunciado para as estações da Linha 4-Amarela do metrô de São Paulo com o propósito de mostrar aos anunciantes como os passageiros reagem às propagandas deles. A loja digital do Ponto Frio do Shopping Vila Olímpia também reconhece o sentimento de seus clientes a partir de suas expressões facial para medir o grau de satisfação diante de algum produto ou do atendimento.

Apesar de serem coisas diferentes, todo reconhecimento facial começa com uma detecção facial. Depois do rosto identificado na imagem, o sistema passa a acompanhá-lo antes de proceder definitivamente para o reconhecimento.

Privacidade

O uso da biometria facial gera preocupação quanto à invasão de privacidade. Para especialistas, tanto a captura das imagens do rosto quanto a formação de um banco de dados faciais são preocupantes.”Reconhecimento facial é uma tecnologia que pode trazer surpresa para as pessoas, deixá-las achando que é ‘Minority Report’. Mas é muito seguro e respeita muito a privacidade, apesar de isso parecer esquisito”, diz Perrotta.

Divulgação

Reconhecimento facial do Facebook

Ele explica que a tecnologia pode identificar apenas as pessoas que autorizarem e nem é preciso guardar as fotos para fazer isso. Basta ter em mãos o “número de RG facial”.

Assim como nome, número de CPF e RG, a biometria facial é uma informação pessoal, que deverá ser resguardada pela nova lei de proteção de dados brasileira – o texto aguarda sanção do presidente Michel Temer.

Quando a lei entrar em vigor, o que deve ocorrer 18 meses após a assinatura presidencial, os interessados em registrar imagens do rosto de alguém para aplicar técnicas de reconhecimento facial deverão pedir a autorização do indivíduo. Deverão ainda permitir que a pessoa possa retificar as imagens de seu banco e até excluí-las.

Em maio, o Facebook teve de pedir permissão para as pessoas caso quisesse continuar a submeter as fotos delas ao reconhecimento facial, graças à entrada em vigor da legislação da União Europeia de proteção de dados. A rede social usa a tecnologia para, entre outras coisas, identificar se um usuário está presente em uma imagem. A partir daí, avisa o sujeito e pergunta se ele dá autorização. Caso contrário, a publicação da foto é barrada.

Quem vigia?

O modo como empresas usam reconhecimento facial já começou a chamar a atenção das autoridades no Brasil. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) resolveu investigar justamente o Facebook. Há uma semana, abriu um inquérito para averiguar se a tecnologia de reconhecimento facial do Facebook é ilegal, já que considera o rosto das pessoas um dado sensível. Para o promotor Frederico Meinberg, a ferramenta poderia promover “novas formas de discriminação”.

Por enquanto, as outras empresas que adotaram esses sistemas não foram questionadas. Fora do Brasil, as gigantes do mundo digital ficam em lados opostos quando o assunto é a criação de uma regulamentação para esse tipo de tecnologia.

A favor, posiciona-se a Microsoft. A Apple diz, de forma genérica, que é a favor da proteção de dados. A Amazon faz a linha entusiasta da tecnologia, mas prefere que não haja amarras legais. O Google não se manifesta. E o Facebook, apesar de não divulgar seu posicionamento, fez lobby para que não passassem leis de estados norte-americanos para proteger consumidores de práticas abusivas de reconhecimento facial.

Fonte: UOL