O 5G E A CORTINA DE BITS

Num memorando enviado a funcionários no final de agosto, o fundador da Huawei, Ren Zhengfei, escreveu que a empresa chinesa “enfrenta um momento de vida ou morte”. Falou em reduzir salários e descreveu em termos militares os sacrifícios exigidos: “Se não puder fazer seu trabalho, então dê espaço para nosso tanque passar. Se quiser entrar no campo de batalha, pode amarrar uma corda em volta para puxá-lo, todos precisam dessa determinação!”. Ren fundou a Huawei em 1987, depois de deixar um posto de engenheiro no Exército. Transformou-a num colosso global das telecomunicações — que reúne quase 190 mil funcionários em 170 países —, faturou US$ 107,3 bilhões em 2018, lidera a tecnologia da quinta geração (5G) de celulares e, em virtude disso, se tornou nos últimos meses o ponto mais sensível na disputa geopolítica entre Estados Unidos e China. O memorando de Ren foi uma tentativa de preparar a tropa para a entrada em vigor do embargo imposto pelos Estados Unidos à Huawei, última salva num confronto que se desenha há anos — e que o governo Donald Trump tornou mais explícito, mais intenso e mais doloroso.

As tarifas comerciais, as manobras cambiais e as rusgas em Hong Kong, Taiwan ou no Mar do Sul da China podem gerar mais manchetes. Fora do campo militar, porém, é na tecnologia que está em curso a principal batalha da disputa sino-americana. Mais especificamente, no salto para as telecomunicações 5G, cujo impacto na vida e na economia promete ser dramático. Conexões 5G formarão a estrutura óssea, o sistema nervoso, as veias e as artérias da economia no século XXI. Seu potencial vem sendo comparado ao das grandes transformações tecnológicas que definiram o século XX, como eletricidade ou internet. A ascensão da Huawei, líder mundial no 5G, representa para a China uma oportunidade sem precedente. Dois cenários são possíveis no futuro. No primeiro, o domínio sobre o 5G emanará de Pequim, não de Washington. No segundo, a disputa persistirá, com dois sistemas paralelos. “Um ecossistema 5G bifurcado aumentará o risco de duas esferas de influência separadas, politicamente divididas e potencialmente incompatíveis”, afirmou a consultoria de geopolítica Eurasia. O mundo ficaria então dividido ao meio por uma “cortina de ferro” digital — ou melhor, por uma cortina de silício, fibra óptica e bits.

Os primeiros sinais da nova divisão ficam evidentes no histórico de restrições impostas pelos Estados Unidos às empresas chinesas de telecomunicações. A mais relevante, embora não a única, é a Huawei, cuja imagem no Ocidente foi vinculada ao Exército chinês, ao desprezo pela propriedade intelectual, a práticas comerciais predatórias (propiciadas por incentivos estatais desleais) e, mais recentemente, à espionagem digital. As americanas Cisco, T-Mobile e Motorola já foram à Justiça acusá-la de pirataria. Em 2008, ela foi impedida de comprar uma fatia da 3Com, que fornecia softwares de segurança ao Exército americano. Em 2012, um comitê da Câmara de Deputados concluiu que os riscos associados ao uso de equipamentos da Huawei e de sua rival chinesa ZTE poderiam “enfraquecer interesses essenciais de segurança nacional dos Estados Unidos”. Em 2016, o Departamento do Tesouro impôs restrições à ZTE, acusada de violar sanções contra o Irã. Um ano depois, Trump decidiu liberar os negócios com a ZTE para concentrar fogo na Huawei, alvo de uma sucessão de vetos no ano passado — até à venda de celulares perto de bases militares. O FBI chegou a cancelar o visto acadêmico de chineses considerados suspeitos de espionagem.

Vista geral do centro de dados da Huawei numa província da China. A empresa foi fundada por um líder militar e carrega acusações de espionagem. Foto: Visual China Group / Getty Images
Vista geral do centro de dados da Huawei numa província da China. A empresa foi fundada por um líder militar e carrega acusações de espionagem. Foto: Visual China Group / Getty Images

Ao fazer pressão sobre aliados para proibir equipamentos chineses nas redes 5G, o governo dos Estados Unidos levou a disputa para fora do país. Atendendo a um pedido americano, o Canadá prendeu em dezembro passado Meng Wanzhou, diretora financeira e filha de Ren Zhengfei, também acusada de violar sanções contra o Irã. Ela aguarda o julgamento de um pedido de extradição. Em janeiro de 2019, o governo Trump fez na Justiça 24 acusações contra a Huawei, a maioria ligada a propriedade intelectual. Em maio, Trump assinou o decreto que a proíbe de usar qualquer tecnologia americana, inclusive o sistema Android, do Google. Pelo último prazo para o embargo entrar em vigor, o Android só poderá rodar em celulares Huawei até 17 de novembro. A Huawei criou um novo sistema, batizado Harmony, mas prefere encará-lo como uma segunda opção e crê ainda em um acordo com os americanos.

Trump incluiu a Huawei na negociação tarifária com o chinês Xi Jinping. Mesmo que aceitem manter o acesso dos chineses ao Android e a chips para celulares, os americanos são inarredáveis na tentativa de banir os equipamentos Huawei das redes 5G em países aliados. Antes mesmo do decreto de Trump e da prisão de Meng, a Austrália e a Nova Zelândia já haviam tomado a medida. Na Ásia, Japão, Vietnã e Coreia do Sul também se alinharam com os Estados Unidos. Na Europa, porém, a acusação americana de que a tecnologia chinesa abre brechas a espiões foi recebida com mais reserva. A Dinamarca desistiu da Huawei em prol da nórdica Ericsson para montar suas novas redes. A República Tcheca lançou alertas contra a segurança dos equipamentos chineses, mas não os proibiu. A Polônia chegou a prender um funcionário da Huawei, acusado de espionagem. A empresa negou envolvimento, demitiu-o e, depois de uma visita oficial do chanceler Wang Yi, anunciou estar disposta a investir € 704 milhões nas redes 5G polonesas.

O Reino Unido montou um laboratório para inspecionar a tecnologia chinesa. No último diagnóstico, em março, concluiu ser impossível garantir que “todos os riscos do envolvimento da Huawei em redes críticas possa ser mitigado a contento no longo prazo”. Mesmo assim, as autoridades britânicas decidiram permitir o uso dos equipamentos Huawei nas redes 5G. Alemanha e França seguem orientação semelhante. A União Europeia optou por não banir a Huawei, por considerar insuficientes as evidências apresentadas pelos americanos de que seus equipamentos possam ser usados para espionagem. No Brasil, o vice-presidente, Hamilton Mourão, garantiu que não haverá embargo à tecnologia chinesa nos leilões das frequências para a nova geração de celulares, previstos para 2020. A Huawei faturou em torno de US$ 1 bilhão aqui em 2018 e acaba de anunciar um investimento de US$ 800 milhões em novas instalações para fabricar celulares em Sorocaba, no interior paulista.

A espionagem não é a única preocupação que tem motivado restrições à tecnologia chinesa. Outra é seu uso por regimes autoritários. A Freedom House constatou, em seu último relatório sobre liberdade, que a China exportou tecnologia digital a 38 dos 64 países em que os direitos individuais estiveram sob ameaça em 2018. A 18 deles, vendeu a tecnologia de vigilância mais sofisticada, com recursos de reconhecimento facial e inteligência artificial. Em 2017, a Huawei proclamava que sua iniciativa de cidades inteligentes — promessa que se torna plena no universo 5G — estava presente em mais de 200 localidades de 40 países, a maioria com sistemas de vigilância, vendidos sob o argumento de aperfeiçoar a segurança. Equipamentos digitais chineses estão em lugares tão díspares como Vietnã, Uganda, Tanzânia, Grécia ou Hungria. Na América Latina, na Ásia e na África, a presença é maciça. Só a Huawei domina 34% do mercado latino-americano e 43% do asiático, segundo números do Dell’Oro Group. A China Electronics Corporation (CEC), estatal eletrônica com um braço militar, ergueu redes de vigilância para os governos da Venezuela, Bolívia e Equador. Equipamentos ZTE, de acordo com a Human Rights Watch, ajudam o governo da Etiópia a monitorar ativistas, jornalistas e políticos da oposição.

A infraestrutura 5G é um componente fundamental para estender o domínio geopolítico chinês no planeta. “Com inteligência artificial, internet das coisas, carros autônomos e cidades inteligentes, o 5G englobará a maioria das aplicações técnicas no futuro”, afirmou a analista Kara Frederick, do Center for a New American Security. “Sem uma rede 5G segura, a infraestrutura americana — incluindo seus sistemas de saúde e transmissão de energia — estará vulnerável.” Falhas poderiam, segundo ela, ser introduzidas depois da instalação das redes, por meio de atualizações de software. “É um erro procurar a ‘arma fumegante’ para incriminar a Huawei. Mais que isso, permitir a presença das empresas chinesas nas redes 5G é como entregar ao governo chinês uma arma carregada.”

A Huawei refuta as acusações de que esteja a serviço de espiões ou do Estado chinês. Ren chegou a afirmar que, para manter a independência, desafiaria as leis de seu país que determinam colaboração na coleta de inteligência. O diretor de segurança da Huawei nos Estados Unidos, Andy Purdy, lembrou numa entrevista recente as atividades de espionagem promovidas pela National Security Agency (NSA) em colaboração com a indústria de telecomunicações americana, reveladas por Edward Snowden. “Os Estados Unidos acreditam fundamentalmente que a China usaria as empresas chinesas — até empresas privadas — para o mesmo tipo de atividade que usam as americanas”, afirmou Purdy à revista Foreign Policy. Um dos documentos, revelado por Snowden em março de 2014, mostra que os EUA tentaram espionar a própria Huawei. “É razoável assumir que a China poderia invadir a rede 5G de qualquer maneira, com ou sem equipamento Huawei”, disse Purdy. “Bani-la não trará segurança adicional.”

Às acusações de pirataria e desrespeito à propriedade intelectual, que assombram a empresa desde o início, a Huawei apresenta uma resposta mais convincente: é a quinta empresa do mundo que mais investe em pesquisa e desenvolvimento, pelo menos 10% do faturamento anual (em 2018, foram 15%). “Acreditamos que o respeito e a proteção à propriedade intelectual é a base da inovação”, afirma num documento sobre propriedade intelectual publicado em junho passado. O texto elenca mais de 100 acordos de patentes e licenciamento com empresas do mundo todo, entre elas Nokia, Ericsson, Qualcomm, Siemens, Alcatel, AT&T, Apple e Samsung. A Huawei afirma ter pagado, nas últimas duas décadas, mais de US$ 6 bilhões pelo uso da propriedade intelectual de terceiros e ter recebido, desde 2015, US$ 1,5 bilhão pela venda de licenças a empresas na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos. Atribuir o sucesso da Huawei à pirataria soa apenas uma desculpa confortável para negar seu pioneirismo tecnológico. No final de 2018, a Huawei detinha nada menos que 87.805 patentes, 11.152 das quais nos Estados Unidos. A empresa diz publicar todo ano entre 100 e 200 trabalhos acadêmicos e afirma ter contribuído com mais de 60 mil especificações técnicas a organizações internacionais de padronização.

Tal pujança explica por que a Huawei controla quase 30% do mercado global de equipamentos de telecomunicações e por que assumiu a liderança no universo 5G. Ao todo, 182 operadoras já haviam realizado testes com redes 5G da Huawei até fevereiro — e 30 haviam fechado contrato. Os principais motivos são o custo — entre 20% e 30% inferior ao das concorrentes — e a facilidade de migração das redes atuais 4G para as novas. A estratégia da Huawei não é nova no mundo tecnológico. Toda empresa que consegue se estabelecer como padrão no mercado conquista uma enorme vantagem competitiva. Foi assim na segunda geração dos celulares, quando a Europa saiu na frente, projetando empresas como Nokia e Ericsson. Também na terceira, quando o Japão largou na frente e depois foi alcançado pelos americanos. Na quarta, desde o lançamento da primeira rede pela AT&T em 2008, os Estados Unidos souberam impor seus padrões e semear uma rede global de fabricantes e desenvolvedores dependentes de fabricantes americanas de chips, como Qualcomm ou Intel. O 4G levou à explosão de produtos e serviços fornecidos por outras empresas americanas, como Apple, Google, Facebook, Amazon, Netflix e Uber.

No 5G, foi a China que assumiu o protagonismo. A diferença, desta vez, é que o ecossistema de negócios associados à quinta geração tem outra ordem de grandeza. Das cirurgias à distância aos carros autônomos, da automação industrial às cidades inteligentes, uma miríade de inovações dependerá dos padrões técnicos e do acesso a redes 5G eficazes e baratas. O Departamento de Defesa americano foi informado dessa realidade da forma mais objetiva possível, numa análise encomendada a um conselho de especialistas e publicada em abril: “O país que dominar o 5G será dono de várias dessas inovações e ditará os padrões ao resto do mundo. É hoje improvável que tal país sejam os Estados Unidos”.

Na primeira fase, o 5G trará uma velocidade de acesso à internet até 20 vezes superior à atual, mas não provocará uma fração da revolução da segunda, com garantia de comunicação à distância praticamente instantânea. A qualidade dos serviços dependerá não apenas da cobertura das antenas, mas também da poderosa rede de fibra óptica a que elas estarão conectadas. A China largou na frente, impondo a instalação de poderosos canais de transmissão ao longo de ferrovias e rodovias financiadas como parte da iniciativa conhecida como Nova Rota da Seda. Ásia, Europa, África e até o Nordeste brasileiro estarão interligados de alto a baixo por fibra chinesa. Em paralelo, a Huawei investiu no desenvolvimento de todas as camadas e componentes da tecnologia 5G: smartphones, antenas, centrais, chips e o software para fazer tudo funcionar. De acordo com a empresa alemã iPlytics, a Huawei detém mais patentes essenciais para o 5G funcionar do que qualquer outra empresa: 1.529, ou 16% do total. Também foi a que mais contribuiu aos padrões técnicos desenvolvidos nos organismos internacionais: 11.423, ou 18,5% do total.

Isso significa não apenas que as demais empresas deverão pagar royalties à Huawei, mas sobretudo que partem dos chineses as opiniões decisivas na hora de estabelecer os padrões que garantem domínio do mercado. No organismo responsável pela definição de tais padrões, conhecido pela sigla 3GPP, os chineses detinham apenas oito das 57 posições decisórias nos comitês estratégicos em 2013 (sete delas eram da Huawei). Num levantamento da consultoria Jefferies publicado em 2017, haviam subido para 10. Na semana passada, eram 13 de um total de 61. O “aparelhamento” chinês do 3GPP ocorre num momento crítico. A definição final dos padrões da segunda fase do 5G, a que promete mais transformações, está prevista para dezembro, depois de vários adiamentos. Os americanos fazem o possível para tentar reduzir a influência chinesa, evidente nas definições da primeira fase, concluídas no ano passado. É uma batalha que muitos consideram perdida, em virtude de uma característica técnica essencial das redes chinesas: a faixa principal de frequências do espectro que escolheram para montar suas operações.


Espectro sempre foi o fator central nas telecomunicações. Quando surgiu o 4G, os Estados Unidos foram pioneiros na faixa depois adotada no mundo todo. Graças a isso, empresas americanas asseguraram o predomínio no mercado. Na hora de alocar as frequências do 5G, foi preciso recorrer a faixas mais elevadas, já que as mais baixas estão congestionadas. Basicamente foram escolhidas duas grandes faixas, a primeira abaixo de 6 giga-hertz, batizada “sub-6”, a segunda acima de 24 giga-hertz, conhecida como “milimétrica” — nela, o comprimento das ondas transmitidas é da ordem de 1 centímetro. Os chineses escolheram para operar seus principais serviços 5G frequências na faixa “sub-6”, que permitem maior propagação do sinal com menos antenas e retransmissores. É isso que torna suas redes mais baratas. Nos Estados Unidos, várias frequências nessa faixa são reservadas para comunicações militares ou do governo. Os americanos decidiram, portanto, priorizar faixas milimétricas. Embora elas permitam maior velocidade de transmissão, e embora avanços tecnológicos prometam maior eficiência, as faixas milimétricas exigem a instalação de mais antenas, e, mesmo assim, as ondas ainda esbarram em barreiras físicas. Economicamente, a tecnologia chinesa oferece mais benefícios a um custo menor. “À medida que o 5G for instalado no globo em faixas semelhantes do espectro, as aplicações para celular e internet e os serviços chineses deverão se tornar dominantes, mesmo que sejam excluídos dos Estados Unidos”, afirma o relatório encomendado pelo Departamento de Defesa.

O 5G não é a única frente em que os chineses ganham dianteira tecnológica dos americanos. Em 2009, as dez maiores empresas de internet mundiais estavam todas nos Estados Unidos. Hoje, quatro são chinesas. A pequena SenseTime ultrapassou Google e Facebook nas pesquisas em inteligência artificial. O sistema de navegação BeiDou já tem mais satélites e é usado em mais países que a americana GPS. Pesquisadores planejam inaugurar em 2020 no Porto de Tianjin um supercomputador dez vezes mais rápido que os melhores em operação. A China também produz 23 dos 41 elementos minerais considerados essenciais à economia e domina nove dos dez sob maior risco de escassez. Com a Nova Rota da Seda, quer criar uma rede de transportes e comunicações ao longo de territórios que concentram 65% da população global. “Será a China um Estado capaz de ultrapassar o Ocidente e assumir a liderança do mundo?”, pergunta o jornalista alemão Kai Strittmatter, correspondente em Pequim por mais de dez anos, no livro We have been harmonised ( Fomos harmonizados ), um alerta contra o risco do domínio de uma ditadura comunista sobre o universo tecnológico. Em chinês, a resposta talvez fosse uma outra pergunta: “Mei ban fa?”. Que se há de fazer?