O frasquinho chegara pelo correio, embrulhado em uma caixa de papelão. Tinha um rótulo pouco convidativo: “Impróprio para consumo humano”, dizia em inglês. Lucas Cabral, de 30 anos, 1,74 metro e bíceps de 44 centímetros, contou que não se importou com a advertência. Passava pouco das 7 da manhã quando pressionou o conta-gotas e sugou 10 milímetros do líquido transparente. Aquela era a medida ideal, segundo lera em um fórum na internet, para obter os melhores efeitos do LGD-4033 — ou Ligandrol —, um tipo novo de anabolizante que Cabral descobrira. As gotas foram despejadas sobre a língua. Não tinham gosto. Cabral tomou o café da manhã e foi trabalhar.
Cabelo cortado rente, ombros largos e uma tatuagem tribal que lhe desce pelo lado direito do dorso, Lucas Cabral exibe, com orgulho, o corpo esperado de um rato de academia. É, aliás, como se define. Treina, religiosamente, de segunda a sábado, sempre no mesmo horário. O desejo de ter o corpo trincado surgiu há cerca de três anos, quando Cabral decidiu que devia parar de fumar e eliminar a barriga de chope. “Vi meu corpo secar”, disse, animado. “Minha saúde melhorou, e minha autoestima também.”
Mas, no final de 2017, a transformação obtida na academia pareceu estagnar. Cabral já não emagrecia com a mesma facilidade, nem seus músculos cresciam no mesmo ritmo. Foi quando descobriu o Ligandrol num fórum de discussão. O composto prometia ganho muscular sem efeitos colaterais e — dado importante — dispensava o uso de agulhas. Bastavam algumas gotinhas insípidas tomadas antes do treino.
Cabral usou o Ligandrol por 49 dias, duas vezes ao dia: de manhã, pouco antes do café, e à noite, antes do treino. Os resultados vieram aos poucos: o volume muscular cresceu, a gordura corporal diminuiu. Mais importante que isso, a estética melhorou. “Deu para notar as pessoas na academia me olhando de um jeito diferente”, disse, satisfeito. “Eu não queria usar um anabolizante tradicional. E o Ligandrol me pareceu um bom ponto de partida.”
O LGD-4033 é mais uma “bomba”, como outras usadas por frequentadores de academias. Desenvolvidas a partir de meados da década de 1990, receberam o complicado título de “moduladores seletivos do receptor de androgênio”. Ou, para facilitar, SARMs, da sigla em inglês. O Ligandrol é um entre mais de uma dezena de SARMs, uma resposta da indústria farmacêutica aos dissabores causados pelos esteroides anabolizantes tradicionais. A maioria dos anabolizantes tenta imitar o funcionamento da testosterona, o hormônio sexual masculino. Uma vez injetados nos músculos, conectam-se a estruturas no interior das células e dão a partida numa sequência de reações que culminam na produção de proteína. São usados para tratar pacientes que perdem massa óssea e muscular.
Mas o uso prolongado de anabolizantes — mesmo com acompanhamento médico — pode provocar câncer de próstata ou problemas de fígado. Nas mulheres, provoca o surgimento de características masculinas, como pelos na face ou engrossamento da voz. Um pacote de alterações que a ciência chama de “efeitos androgênicos”. Os SARMs têm a vantagem de se conectarem somente aos receptores dos músculos esqueléticos. “Em teoria, isso deveria permitir que eles estimulassem a síntese de proteína sem provocar os mesmos efeitos colaterais”, disse o professor Alexandre Hohl, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia. O primeiro membro desse novo grupo foi descoberto quase por acidente, por uma equipe de cientistas da Universidade do Tennessee, nos Estados Unidos. Na época, o professor James Dalton estudava uma substância que promovia o aumento dos músculos em ratinhos: “Foi quando percebemos que nosso composto não vinha acompanhado por efeitos androgênicos”, disse Dalton a ÉPOCA. “Para nós, foi uma grata surpresa.”
A novidade deu a largada numa corrida pelo desenvolvimento de novas substâncias com características similares. Gigantes do setor farmacêutico, como Johnson & Johnson e Merck, criaram seus próprios SARMs. As pesquisas pareciam muito promissoras: “Mas a primeira geração desses compostos desapontou”, disse Hohl. No ano passado, a Food and Drug Administration (FDA) — a agência americana que se encarrega de avaliar a segurança e eficiência de novas drogas — publicou um relatório atestando que os SARMs estudados até ali podiam provocar problemas hepáticos e cardiovasculares, aumentando o risco de ataques cardíacos. “Era um sinal de que precisavam de mais anos de desenvolvimento”, disse Hohl.
Entretanto, como sempre, algo saiu do controle. Atletas profissionais começaram a usar os SARMs, tanto que em 2008 a Agência Mundial Antidoping (Wada, na sigla em inglês) os colocou entre as substâncias proscritas. Mas uma droga que aumenta músculos só podia cair nas graças daqueles que são ávidos por isso e topam experimentalismos: os fisiculturistas.
Num vídeo postado em março deste ano, o fisiculturista Fernando Maradona fez o anúncio entusiasmado. “Hoje, estamos aqui para falar sobre um suplemento que está invadindo o meio do bodybuilding”, disse, encarando a câmera com o dedo em riste. “Isso aí: SARMs.” Nas redes sociais, os fãs chamavam Maradona pelo manjado apelido de “Hulk brasileiro”: os músculos retesados já lhe renderam títulos importantes em competições no Brasil e no exterior e boas colocações no Mr. Olympia — uma das principais competições do meio. “O bodybuilder é como um ratinho de laboratório”, disse Maradona. “Ele testa toda substância nova que promete melhorar seu desempenho.” Fisiculturista há 20 anos, há três Maradona virou também youtuber. Seus vídeos documentam, é claro, sua rotina de treino, dão dicas de dieta e exercícios e fazem a crônica do que há de novo no “meio bodybuilding”.
Em 2010, Maradona participava de uma competição nos EUA quando ouviu falar nos SARMs pela primeira vez. Um amigo, dono de uma loja de suplementos, decidiu presenteá-lo com o composto novo: “Mas, na época, não levei a sério. Achei que fosse papo de vendedor”. A droga ficou esquecida em alguma prateleira. Cerca de três anos depois, durante uma viagem a Las Vegas, o amigo refez a oferta. Dessa vez, Maradona deu uma chance à substância. “Eu me surpreendi”, disse. “Melhorou minha performance, resistência e capacidade de recuperação.”
Cinco anos depois, Maradona viu o interesse pelos SARMs explodir para além do meio competitivo. Foi quando decidiu gravar vídeos sobre o assunto. Afirmou que sua intenção não era estimular a procura pelos compostos, apenas tirar dúvidas sobre um tema que seus fãs já discutiam. “O que acontece é que todo mundo quer ter os mesmos resultados que um fisiculturista”, teorizou. Para ele, o interesse por anabolizantes varia como a moda. “Toda vez que a ciência aparece com algo novo, há um boom. Hoje, o boom é dos SARMs.”
O personal trainer Maurício Medeiros tem 36 anos, cabelos curtos e pele levemente bronzeada. Na internet, ganhou notoriedade ao integrar o elenco do Fábrica de Monstros — um canal no YouTube (bastante) satírico, por vezes sério, criado pelo marombeiro profissional Leo Stronda. A atração tem mais de 2 milhões de inscritos. Medeiros terminara de dar uma aula quando recebeu uma mensagem pelo WhatsApp: “Olha só. Esse é o SARM da moda”, disse, entregando o celular à reportagem. Troncudo, sério, sentava-se empertigado na poltrona. Na foto, havia um frasco com um rótulo azul, no qual fora impressa uma cadeia de carbonos. “A promessa é que a pessoa perca 30 quilos ao mês. Imagine o risco.”
Imerso nesse universo de anilhas, halteres, barras e suplementos alimentares, Medeiros vive atento ao inevitável burburinho que acompanha o surgimento de um novo anabolizante. “Há sempre alguém que conhece alguém que usa”, disse. Por seus cálculos, o bochicho sobre os SARMs chegou às academias — já além do meio dos fisiculturistas — há cerca de três anos e ganhou vigor nos últimos 12 meses. A percepção é confirmada por estatísticas do Google. A procura pelo termo “melhor SARM” cresceu cerca de 5.000% no último ano no Brasil.
O frequentador de academia que procura SARMs, mesmo sem intenção de competir, o faz por vaidade. “Aquele menino magro, que as garotas nunca notaram, começa a ganhar corpo”, disse Medeiros. “E isso vicia. Resultado vicia.” A propagação do assunto é explosiva. Essa nova vaga de anabolizantes tem um instrumento que faltava às anteriores: as redes sociais. “Costumo dizer que a internet foi como uma bomba de Hiroshima para os anabolizantes”, disse Medeiros. “Hoje, se quiser comprar isso aqui” — disse, apontando para o frasco na foto do celular —, “basta passar meia hora no Google.”
No YouTube há canais especializados nos SARMs. Alguns usuários narram suas experiências com os anabolizantes por semanas a fio — sob o olhar atento de uma audiência que comenta e pede dicas. Quem os vê quer saber qual SARM usar para conquistar o corpo ideal, qual a dosagem mais adequada e qual a duração do ciclo — no jargão do setor, o tempo de uso da droga. São todas questões para as quais a ciência ainda não tem resposta. Mas para as quais os internautas juram ter uma saída. “Meu cabelo começou a cair demais, toda vez que passava os dedos por ele”, disse um rapaz, antes de apontar a solução. “Acho que a questão era a dosagem. Diminuí.”
A empreitada do gaúcho Renan Duarte com os SARMs começou no final de janeiro deste ano. “Oi, galera do YouTube. Hoje, inicio meu ciclo”, anunciou num vídeo do dia 27 daquele mês — óculos escuros no rosto, franja jogada de lado. Seu “Projeto SARMs” durou 90 dias e 120 cápsulas de uma substância chamada S23. Os vídeos foram gravados no quarto, com a câmera parada e com Duarte devidamente descamisado. “Eu quis fazer os vídeos para auxiliar quem pretendia comprar. Para essas pessoas terem algo verdadeiro em que acreditar”, disse. Foram 11 vídeos, um por semana. O último guardava um desapontamento. “A promessa dos laboratórios era puro marketing”, contou Duarte. “O produto que usei não cumpriu nada do que prometeu.”
A procedência duvidosa dos SARMs representa um risco adicional. Como não há controle por qualquer agência governamental, é impossível garantir o conteúdo do frasco — e quais seus efeitos sobre o corpo. Um estudo publicado em novembro do ano passado, conduzido por uma equipe da Universidade Harvard, pôs à prova 44 produtos vendidos on-line como SARMs. A maioria falhou: somente 23 tinham, de fato, um SARM em sua composição. Outros 17 continham substâncias ilegais na mistura — incluindo aí um composto tóxico, cujo desenvolvimento foi abandonado pela indústria farmacêutica há mais de dez anos, por provocar câncer em animais. Os outros quatro não apresentavam qualquer ingrediente ativo — não eram melhores que farinha. “Estamos falando de remédios. É como se eu vendesse uma droga controlada, como o Diazepam, livremente pela internet e ninguém fizesse nada”, disse Hohl, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia. Enquanto isso, milhares se arriscam por um corpo trincado, ao alcance de alguns cliques. “Ainda não sabemos se essas substâncias são seguras”, disse James Dalton. “A verdade é que quem as usa se expõe a riscos muito grandes.”