Enquanto milhares de estudantes venezuelanos abandonam seus estudos – e o próprio país – para fugir da crise, outros universitários estrangeiros fazem o caminho inverso.
Tito Bohórquez, engenheiro agrônomo, viaja duas vezes por ano de Los Ríos, no Equador, até Maracaibo, noroeste da Venezuela, para participar das aulas presenciais do seu doutorado em Ciências Agropecuárias. A distância é de 2,5 mil quilômetros.
O primeiro vôo que pega leva três horas para chegar até Caracas, a capital venezuelana. Além do preço das passagens, Bohórquez precisa arcar com as estadias em hoteis, comida e transporte. Ainda assim, o desgaste e os custos da viagem valem a pena, diz ele.
Professor e diretor do curso de Agropecuária na Universidade Técnica de Babahoyo, no Equador, Bohórquez é parte de um grupo cada vez mais numeroso de profissionais equatorianos e colombianos que fazem pós-graduação na Universidade de Zulia, em Maracaibo, perto da fronteira com a Colômbia.
Profissionais da Colômbia e do Equador interessados em especializações, mestrados e doutorados estão encontrando nas universidades públicas da Venezuela uma combinação perfeita: taxas de matrícula muito baixas e qualidade educacional, apesar da crise.
As áreas buscadas são Medicina, Odontologia, Engenharia, Direito, Veterinária, Humanidades e Agronomia.
Um doutorado na Universidade de Zulia custa US$ 1.500 (cerca de R$ 5.700) por semestre, mais US$ 500 de inscrição. No total, US$ 8.000 (R$ 30 mil). Cada ida para a Venezuela, considerando gastos com passagens aéreas, hospedagem, alimentação e transporte local, soma mais US$ 1.000 (R$ 3,8 mil).
“Despesas de mensalidade e viagem para fazer um doutorado no Peru sairiam de US$ 28 mil a US$ 30 mil. Na Colômbia, os cursos têm custo de US$ 40 mil e aulas presenciais a cada três semanas. No Chile, é o mesmo valor, e é preciso residir no país”, compara Bohórquez.
Busca por economia e qualidade
O interesse de estrangeiros pela pós-graduação da Universidade de Zulia está em alta há sete anos, explica Rosa Raaz, coordenadora de doutorados da Faculdade de Agronomia.
O projeto de que Bohórquez participa, por exemplo, teve início em 2011, apenas com venezuelanos. Entre 2012 e 2013, cinco estudantes colombianos se inscreveram. “E em 2017 houve um boom”, conta Raaz. “Foram duas turmas com 33 estudantes equatorianos, de universidades e empresas privadas, apenas em Agronomia”.
O aumento de estrangeiros também tem sido benéfico para a Universidade de Zulia. É uma instituição centenária e dependente do Estado venezuelano, que vive um forte déficit orçamentário.
Assim, as mensalidades pagas pelos estudantes de pós-graduação estrangeiros permitem que a universidade pague os salários dos professores, adquira equipamentos e mantenha as estruturas. “É uma relação de ganha-ganha. Isso significa que podemos manter a universidade aberta”, opina Raaz.
A matrícula de estrangeiros, porém, gerou polêmica. O jornal local Versión Final publicou, em junho, uma série de reportagens sobre a venda de vagas de pós-graduação para estrangeiros na Universidade de Zulia por até US$ 5 mil. A Faculdade de Medicina acabou anunciando a demissão de quatro profissionais acusados de participarem do esquema de fraude.
‘Grato à Venezuela’
Há três anos, Rafael Palmera Crespo, arquiteto e professor colombiano de 51 anos, vem cruzando a fronteira entre seu país e a Venezuela a pé, para, então, começar uma viagem por terra até Maracaibo. “Não é muito fácil chegar à Venezuela”, admite.
A cada 15 dias, Crespo repete a viagem. Sua motivação é acadêmica: assistir às aulas presenciais da Universidade de Zulia, para completar seu doutorado em Arquitetura.
Na Colômbia, o doutorado custaria entre 80 e 100 milhões de pesos (US$ 31 mil). Já na Venezuela, o custo total é cerca de metade. “Estou muito agradecido à Venezuela, independentemente das condições em que vivem e pelas quais nós colombianos lamentamos muito. Nesse nível de educação, a Venezuela é mais acessível que a Colômbia”, diz Crespo.
Além da economia, Crespo afirma que a qualidade dos professores venezuelanos é “única”.
Conhecimento é patrimônio que não se desvaloriza
O nível acadêmico da Venezuela é um dos atrativos. Os professores venezuelanos com títulos de doutor, a maioria formados em universidades da América do Norte e da Europa, fazem com que os programas de pós-graduação sejam de alta qualidade.
Víctor Granadillo, doutor em Química, autor de 300 artigos em revistas científicas e tutor de alunos estrangeiros, afirma que os 50 professores que integram seu departamento na Faculdade de Ciências têm doutorado.
Ketty, sua esposa e professora da Faculdade de Economia, garante que a excelência universitária sobreviveu apesar da crise. “O conhecimento é um patrimônio que jamais se desvaloriza”.
Medicina é uma das áreas com maior demanda. São 600 colombianos e equatorianos, segundo Freddy Pachano, médico cirurgião pediatra e diretor de pós-graduação dessa faculdade.
A participação de médicos estrangeiros na pós-graduação é tanta que está perto de igualar o número de médicos venezuelanos.
“A Venezuela não está devastada’
Apesar das vantagens econômicas, Bohórquez, o agrônomo do Equador, teve medo de estudar na Venezuela. A insegurança, a tensão política e a hiperinflação eram alarmantes. Mas dois amigos de Bohórquez, que já faziam pós-graduação em Medicina na Universidade de Zulia, o incentivaram.
“A Venezuela não está devastada”, acredita Bohórquez. Mas a inflação – a pior do mundo – é tão brutal que pulveriza o poder de compra até das moedas estrangeiras mais fortes. Assim, quando Bohórquez foi ao país pela primeira vez, uma diária de táxi custava US$ 3. Agora, esse é o valor de uma hora de serviço de táxi.
Bohórquez e seu grupo de amigos estudantes já não janta fora com frequência. Preferem cozinhar em casa, para economizar.
Antes de conceder esta entrevista, Bohórquez assistiu a uma aula com sete colegas em uma das casas que eles alugam. O grupo precisou improvisar o encontro após um inconveniente elétrico na faculdade – algo corriqueiro devido às falhas elétricas que afetam a Venezuela.
Os problemas, no entanto, não fazem Bohórquez se arrepender. “O conhecimento é um diamante bruto das universidades da Venezuela. Esta é uma oportunidade de ouro”.