Usar a tecnologia é uma via de duas mãos. À medida que vamos moldando os produtos para que eles atendam às nossas expectativas da melhor forma, esses produtos nos moldam de volta. Essa é a introdução da resposta da fundadora da consultoria Change Sciences Pamela Pavliscak quando questionada sobre como ter uma relação saudável com tecnologia. Pavliscak estuda a relação entre emoções e a tecnologia – e como fazer desse relacionamento algo positivo para as pessoas.
Nos casos positivos, a interação com a tecnologia é boa e satisfatória. Mas o problema são os casos negativos – com os quais você muito provavelmente já se deparou. Loops de recompensa que mantêm o usuário em redes sociais, ou que fazem instigam a fazer compras mesmo sem convicção, são exemplos das relações negativas.
Como saber se uma relação com tecnologia é saudável?
Nós estamos modelando a tecnologia, e ela nos modela de volta. Não acho que exista uma maneira fácil de descobrir qual é esse balanço. Quando eu penso em nossa relação com tecnologia, eu penso sobre como seria uma relação saudável com outro humano e uso como modelo. Se é uma relação que dá arrepios, que parece invasiva, que tenta me convencer a fazer coisas que eu não quero ou que não têm meu consentimento, acho que não é uma boa relação.
No mundo do design, desenhamos a tecnologia para apenas duas situações de emoções: prazer, que sempre parte do princípio de que as pessoas estão tristes e que a tecnologia as deixará felizes; ou para cortar as emoções e tornar a tecnologia calma e neutra. Eu sinto que é um leque muito restrito. Se eu conhecesse uma pessoa somente com essas duas emoções… seria quase a definição de um psicopata. Precisamos olhar para emoções como esse contexto importante.
Os modelos de negócios influenciam nesse design?
Os modelos de negócios influenciam a forma como desenhamos a experiência digital hoje. A tecnologia chama as pessoas e faz com que elas se sintam melhores. Isso é feito em pílulas para que elas estejam sempre voltando para sentir boas emoções. Isso inicia um ciclo – o mesmo ciclo de um vício. Mas se isso acontece, é um exemplo de design de convencimento, esse é o gancho.
Esses modelos de negócios se aproveitam disso, desse loop emocional que não nos ajuda a ser mais inteligentes emocionalmente – que permite que nós compreendamos nossas emoções e emoções de outras pessoas. Os modelos de negócios, principalmente de mídias sociais ou processos de compra online, nos prendem nesse loop.
De tempos em tempos aparecem pesquisas afirmando que as redes sociais nos deixam para baixo. Por princípio elas são nocivas?
As mídias sociais têm muitos bons aspectos, como permitir o contato com amigos e familiares distantes. O problema é que o design dessas tecnologias não reforça as suas melhores características. A maioria das mídias sociais é desenhada para conversas rasas, em vez de debates aprofundados e longos. As interações são de “pegar ou largar” e é por isso que as emoções parecem cada vez mais extremas no mundo digital. São três camadas: design, modelos de negócios e os próprios usuários – que não usam as plataformas com o melhor preparo emocional. Mas o modelo de negócios e o design ajudam isso a funcionar em escala, já que nós tendemos a nos adaptar ao ambiente.
As pessoas podem perceber isso e tentar se afastar, tentar tirar uns dias para desintoxicação digital. Mas eu acho que o design tem que ir além disso. Eu penso nessas iniciativas de bem-estar digital que empresas como Google e Apple estão trabalhando para que o usuário possa observar quanto tempo gasta. É um bom começo, mas não ataca o problema de verdade, que são o modelo de negócios e o design do produto, que muitas vezes mantêm aquele modelo de pé.
Mas isso deveria ser papel dessas empresas?
É difícil. Mas a indústria da tecnologia sempre teve uma visão extremamente idealista do mundo, sempre houve uma ânsia de fazer do mundo um lugar melhor. Mas há uma linha tênue entre forçar as pessoas a algo, em oposição a criar um ambiente onde as pessoas possam aflorar, sentirem-se resilientes e atingirem maiores níveis de inteligência emocional. As pessoas vão discordar de mim aqui e dizer que a tecnologia tem de ser neutra. Mas eu não vejo de forma realista esse discurso. Nós estamos emocionalmente envolvidos com carros, casas, são relações complexas e não somente com outros humanos. Não acho que nós pensaremos, “ah, aqui é tecnologia, não me envolvo emocionalmente, como faço com todo o resto das coisas”.
Eu volto ao meu exemplo das relações humanas. Eu não acho que nós tenhamos essa relação aos moldes humanos com requisitos básicos, como consentimento. Em relacionamentos, nós temos algumas normas ou regras explícitas ou implícitas. E nós não aplicamos essas regras à tecnologia. Parcialmente é porque empresas de tecnologia estão baseadas nesses modelos. Alguém vai lembrar dos termos de uso, mas quem lê aquilo de verdade? São textos cada vez mais longos e você não costuma receber um convite de reavaliação dos termos. Se você pensar, isso é o básico de qualquer relação humana. Alguns movimentos contemporâneos são sobre isso, como o #metoo, que é um desdobramento sobre o consentimento.
O que aconteceria se houvesse uma consciência na indústria e as pessoas levassem em consideração as emoções ao desenvolver produtos?
Eu acho que a nossa relação com tecnologia ficaria um pouco menos desagradável. Agora existem níveis desagradáveis no uso da tecnologia: pode ser frustrante, com a tecnologia não entendendo como você se sente, como quando Alexa não sabe algo que você pergunta. É preciso entender que as pessoas não têm apenas um sentimento. As suas melhores relações envolvem uma gama grande de emoções e sentimento, teríamos tecnologias mais interessantes e não apenas produtos repaginados.