Uma substância extraída da hemolinfa (fluído que tem função semelhante a do sangue dos vertebrados) de um aranha caranguejeira poderá dar origem a um analgésico para tratar dor neuropática (causada por lesões ou doença do sistema nervoso central) e atenuar problemas associadas a ela – depressão, falhas cognitivas ou de memória e atenção, por exemplo.
A pesquisa rendeu a sua autora, a bióloga Ana Carolina Medeiros, o Prêmio Jovem Neurocientista 2018, concedido no último Congresso da Sociedade Brasileira de Neurociência e Comportamento (SBNeC), realizado em agosto.
A jovem pesquisadora foi orientada em seu trabalho pelo professor Renato Leonardo de Freitas, coordenador do Laboratório de Dor e Emoções do Departamento de Cirurgia e Anatomia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). De acordo com ele, a dor crônica é um dos principais problemas de saúde, afetando mais de 30% dos adultos.
“Ela está presente em quase todas as patologias”, diz.
A dor neuropática, por sua vez, é um problema comum e faz parte de várias síndromes neurológicas, representando 25% dos pacientes atendidos nas grandes clínicas de dor.
“No estudo de Ana Carolina, mostramos, em modelos animais, que esse tipo de dor pode causar depressão, e que a migalina, administrada em uma região do neocórtex, é capaz de atenuar os dois problemas”, explica.
Migalina é a substância retirada da aranha que foi estudada por Ana Carolina.
Ela foi descoberta pelo pesquisador Pedro Ismael da Silva Júnior, do Instituto Butantan, durante seu doutorado, concluído no ano 2000.
“Na época eu estava estudando o sistema imune inato de aracnídeos, especificamente da aranha caranguejeira Acanthoscurria gomesiana”, conta. “Eu buscava moléculas com atividade antimicrobiana (antibiótica) no sangue (hemolinfa) dessa espécie.”
Silva Júnior encontrou e isolou quatro moléculas com essa propriedade, entre elas a migalina. “Descobrimos que essa substância provavelmente está envolvida na defesa imune dos aracnídeos, que vivem em ambientes repletos de microrganismos e passam por uma fase crítica para crescer”, explica.
“Esses invertebrados possuem exoesqueleto (esqueleto externo) e, para crescer, precisam sair dele, ou seja, trocá-lo de tempos em tempo, em um processo chamado ecdise.”
Nesse momento, eles estão sujeitos à perda de hemolinfa e a serem atacadas por microrganismos.
“Essas moléculas antimicrobianas, como a migalina, desempenham um importante papel nesse momento”, diz Silva Júnior.
“Tudo indica também que ela possa estar envolvida ainda na cicatrização nesses animais, ajudando na formação de uma nova cutícula ou no reparo dela.”
A necessidade de uma maior disponibilidade dessa molécula para pesquisas – e para seu eventual uso para produção de novas drogas – o levou a estudar suas características e sintetizá-las em laboratório.
Depois disso, devido à semelhança da migalina com outras moléculas envolvidas com o sistema nervoso, Silva Júnior procurou o pesquisador Wagner Ferreira dos Santos, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da mesma instituição (FFCLRP-USP), e propôs uma parceria no estudo dessa substância e de seu efeito sobre os seres humanos.
“Ele e sua orientanda, a Ana Carolina, e Freitas descobriram que ela também apresentava efeito analgésico”, conta Silva Júnior.
Ana Carolina, por sua vez, diz que a pesquisa buscou entender o efeito da migalina no sistema nervoso central em relação à dor.
“Nesse trabalho especificamente, avaliamos também o seu efeito sobre a comorbidade (relação entre duas ou mais doenças) entre dor neuropática crônica e depressão”, explica.
“Como já era conhecida essa relação de dor intensificando a depressão e vice-versa, procuramos então investigar a ação da migalina sobre essa comorbidade quando microinjetada em uma região do cérebro envolvida na elaboração de aspectos sensoriais e cognitivos da dor, o córtex pré-frontal.”
De acordo com ela, a equipe conseguiu demonstrar o efeito analgésico da migalina quando microinjetada no córtex pré-frontal, além de seu efeito sobre a comorbidade, atenuando não apenas sintomas decorrentes desse quadro, mas também comportamentos do tipo depressivo associados a ele.
“Não podemos dizer que ela apresenta efeito especificamente sobre o quadro depressivo, uma vez que apenas estudamos este transtorno quando associado a dor neuropática cônica”, reconhece.
Ou seja, Ana Carolina diz que não pode afirmar que a migalina apresenta algum efeito diretamente sobre a depressão, pois o objetivo do estudo foi investigar a relação de comorbidade.
“No entanto, tratamos a dor e vimos melhora nos comportamentos do tipo depressivo”, diz. “Isso quando uma molécula com ação farmacológica analgésica (migalina) é administrada em uma estrutura cerebral associada a transtornos psiquiátricos e na cronificação da dor. Sendo assim, por mais que a molécula apresente um potencial antidepressivo, o estudo não investigou esse efeito de forma independente.”
Para que a migalina possa dar origem a um novo analgésico serão necessárias, no entanto, mais pesquisas.
“O nosso é um estudo inicial, mas que se mostrou importante no sentido de melhor entender o funcionamento dessa substância”, diz Ana Carolina. “Também a coloca como uma molécula muito interessante para que seja estudada mais profundamente como um possível medicamento.”
Freitas acrescenta que essa pesquisa se insere em um contexto mais amplo de busca pelo desenvolvimento de novas drogas a partir de substâncias naturais.
“Os aspectos econômicos e biotecnológicos de compostos que são derivados de plantas, de venenos de animais, entre outros, vêm recebendo grande atenção da comunidade científica, da indústrias farmacêuticas e do sistema de saúde”, explica.
“De fato, algumas dessas substâncias que podem ter cunho medicinal possuem importância para as populações humanas, sendo utilizadas em diversas patologias.”
De acordo com ele, o fato de a migalina atenuar a dor e a depressão nos animais abre a possibilidade de suas pesquisas serem aprofundadas.
Depois disso, a equipe poderá partir para novos estudos, visando testes clínicos e o possível desenvolvimento de um novo medicamento. “Vale salientar que os órgãos de fomento estaduais e federais precisam continuar e, até mesmo, aumentar os investimentos em ciência e tecnologia”, diz.
“Nosso grupo é um exemplo de que, mesmo com poucos recursos, pode-se trazer coisas novas, novas abordagens, novos conhecimentos e até mesmo novos fármacos.”
Ele lembra que isso seria muito importante, porque a dor crônica e neuropática é de difícil tratamento e muitos dos medicamentos atuais ou não possuem efeito em atenuá-la ou causam grandes e desagradáveis efeitos adversos.
“Sendo assim, estudar minuciosamente os possíveis efeitos analgésicos com novas abordagens e substâncias pode nos oferecer alternativas para o tratamento”, diz.
“Mas são necessários ainda estudos adicionais para ratificar (as descobertas) e para propormos a migalina como um agente analgésico e antidepressivo em situações de dor crônica. Contudo, demos o passo inicial, agora, novas estratégias de investigações serão consideradas nos grupos de pesquisas, que colaboraram com este estudo para darmos continuidade nessa pesquisa.”