“Por cenas destas é que não edito sobre política. Parece que doí (sic) a algumas pessoas tocar nesse assunto. Enfim, continuem na caverna”, escreveu no início do ano um editor da Wikipédia, vinculando a última palavra a um verbete sobre a Alegoria da Caverna, em uma longa discussão na página de Jair Bolsonaro, candidato pelo PSL à Presidência.
Líder nas pesquisas de intenção de voto, Bolsonaro é quem encabeça também na versão em português da Wikipédia, enciclopédia colaborativa online, o maior número de disputas entre usuários sobre como certos conteúdos devem ser apresentados.
A página de Bolsonaro é uma das que têm maior nível de proteção — tanto para evitar vandalismo quanto para evitar que militantes alterem seu conteúdo para beneficiá-lo. Hoje, só podem editar o verbete autorrevisores, editores com maior experiência no site.
Em uma eleição polarizada, o site é mais um campo de batalha, com direito a discussões acaloradas e guerras de versões.
A Wikipédia pode ser editada por qualquer pessoa com acesso à internet. Para garantir a qualidade das informações, há uma série de regras a serem seguidas. A “briga” pelo conteúdo no site é significativa porque seus verbetes costumam aparecer entre os primeiros resultados nas buscas sobre diversos assuntos no Google.
Os artigos incluem também seções destinadas a discussões, entre os editores da plataforma, sobre questões que vão dos tópicos apresentados na página às imagens utilizadas para retratar personagens.
Entre os candidatos à Presidência, o verbete do ex-capitão do Exército é o que tem maior volume de edições feitas tanto no último ano (501 alterações) quanto no último mês (128 mudanças), além de uma enorme página de discussão sobre o conteúdo.
Mas a reprodução, na Wikipédia, de uma visibilidade que acompanhe as pesquisas de intenção de voto para por aí. Candidato do PT e segundo colocado nas pesquisas, Fernando Haddad apresenta, por exemplo, o menor volume de edições em seu verbete no último ano — considerando-se, porém, edições no último mês, ele sobe para a terceira posição.
Já João Amôedo, que aparece em sexto lugar nas pesquisas, com menos de 2% das intenções de voto, é um dos candidatos cujo verbete com grande volume de edições (em 3º no último ano) e audiência (2º).
A reportagam acompanhou os debates e edições nos verbetes de candidatos com maior audiência na plataforma (acima de 100 mil visualizações de páginas nos últimos 60 dias). Essas disputas na Wikipédia refletem fatos e versões que têm marcado o jogo eleitoral em um quadro mais amplo.
As discussões sobre o verbete de Bolsonaro são costuradas por frequentes acusações de parcialidade.
“A questão aqui é que no Brasil estamos tendo uma guerra cultural entre esquerda e direita, por isso que este artigo está assim”, disse o usuário Micael D. no início do ano, se colocando à disposição para tornar a página mais “imparcial”.
Editores pediram o apontamento de problemas específicos. Chronus, por exemplo, responde a Micael D.
“Dizer, sem base em qualquer evidência palpável, que um artigo totalmente referenciado e descritivo ‘tenta afirmar um ponto de vista’ é pura disseminação de desconfiança”.
Alguns casos concretos foram longamente discutidos pelos usuários – por exemplo, como apresentar as falas e posições do candidato do PSL sobre a ditadura militar, o laicismo do Estado e a imigração.
A reprodução de uma frase de Bolsonaro dita em 2015 ao jornal Opção, de Goiás, foi alvo de polêmica no verbete: “Não sei qual é a adesão dos comandantes, mas, caso venham reduzir o efetivo [das Forças Armadas] é menos gente nas ruas para fazer frente aos marginais do MST, dos haitianos, senegaleses, bolivianos e tudo que é escória do mundo que, agora, está chegando os sírios também. A escória do mundo está chegando ao Brasil como se nós não tivéssemos problema demais para resolver”.
Para alguns, frases como essa justificavam a classificação de Bolsonaro como um candidato “contra a imigração”; outros argumentaram que isto seria uma generalização. Hoje, o verbete reproduz a fala, acompanhada de outras declarações do deputado sobre a imigração.
A classificação de Bolsonaro como um político de “direita” ou “extrema-direita” também foi alvo de discussões — prevalecendo, hoje, a sua classificação como uma “figura” conhecida por suas “visões políticas populistas e de extrema-direita”.
Com o terceiro maior número de visualizações, a página de Ciro Gomes é a segunda com mais edições nos últimas 30 dias e, assim como a de Bolsonaro, é alvo de acusações de parcialidade.
Às vezes a briga é tão tensa que em vez de tentar dialogar na página de discussão, a questão vira uma guerra de edições do próprio verbete: um usuário escreve algo, outra pessoa apaga, o usuário volta a escrever a mesma coisa, outro modifica, assim sucessivamente.
Na página de Ciro, isso acontece em um trecho com falas polêmicas do candidato supostamente tiradas de contexto — um usuário diz que sua tentativa de contextualizá-las têm sido “sistematicamente impedida”.
Do outro lado, um editor acusa a página de “ser banalizada com panfletagem socialista”.
A discussão que mais chama a atenção, no entanto, é um tanto curiosa: sobre uma seção de “previsões concretizadas”, que acabou retirada. “Ciro Gomes não é nenhum profeta para uma seção anormal como essa figurar em seu artigo, fato provavelmente singular nos verbetes de políticos”, diz o usuário Edmundo Soares.
A discussão é de julho deste ano, mas as “previsões” referidas são de 1997, quando Ciro disse, em uma entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, que o real seria desvalorizado após as eleições de 1998. Em 1999, a moeda forte foi desvalorizada no primeiro ano do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.
A solução, neste caso, foi incluir essas informações no tópico sobre as eleições daquele ano na página de Ciro. Nada de “previsões concretizadas”.
Banqueiro ou bancário?
Divergências na caracterização também dividiram editores no verbete de João Amôedo (Novo): ele deve ser classificado como “banqueiro” (dono ou sócio de banco) ou “bancário” (que trabalha em banco)?
Hoje, o artigo classifica o candidato como banqueiro, usando como referência reportagens que o descrevem desta forma.
“Há fontes informando que ele foi sócio, gestor e conselheiro de bancos, funções que estão todas ligadas ao termo banqueiro”, diz o usuário Wikimate.
“Trata-se de biografia de pessoa viva, o que requer comedimento. Atribuir-lhe uma profissão que ele próprio nega ter tido não é ético”, rebate Haran.
Amôedo fez sua carreira como executivo do setor financeiro e foi sócio do banco BBA, que hoje faz parte do Itaú Unibanco.
Em debates menos acalorados, usuários também retiraram um acento agudo no nome do meio de Amôedo, “Dionisio”, e questionaram se era relevante a informação de que o candidato já completou seis provas de “Ironmans” e mais de 10 maratonas — dados que acabaram ficando na página.
Marina, a menos polêmica
Não são muitos os tópicos de discussão sobre o verbete do emedebista Henrique Meirelles, mas a primeira linha de uma versão antiga do artigo incomodou um usuário. Ele questionou a colocação anterior do patrimônio de R$ 377 milhões do biografado na introdução da página.
“Já está mais abaixo, não é relevante para constar na introdução. O patrimônio dele incomoda tanto assim (…)?”, perguntou, referindo-se ao valor declarado pelo candidato ao TSE neste ano.
A página de Marina Silva também não tem muitas polêmicas. A principal é sobre alguém ter colocado a informação de que sua campanha recebeu doação de Eike Batista e escrito (erroneamente) que a doação foi ilegal.
O usuário Instambul reclama: “O texto cita diversos políticos que receberam doações de EB (Eike Batista) e o editor resolver incluir somente no verbete da Marina demostra claramente parcialidade. Em nenhuma parte do texto diz que as doações foram ilegais conforme mencionado na edição.”
Mais de 15 respostas depois, não se chega a um consenso, mas alguém decide pelo “coletivo” e retira a informação do verbete.
Pequenos e disputados
O verbete de Guilherme Boulos (PSOL) é um dos menores em informações.
A principal polêmica é se as ações do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), que Boulos lidera, devem ser classificadas como invasões ou ocupações.
“Posse clandestina não é ocupação”, reclama Felipe da Fonseca, que advoga pela troca para o termo “invasão”.
“Discordo da troca do termo ocupação por invasão”, afirma Raimundo57br. “Obviamente que o termo ocupação tem um caráter neutro enquanto que o termo invasão tem um caráter pejorativo. O defensor da troca do termo, ao declarar (que) o termo ocupação tem um viés ‘esquerdista’, revela sua militância direitista”.
Ele também lembra outros casos em que a palavra foi usada para evitar viés: “Nos referimos aos territórios ocupados por Israel como ‘ocupados’ e não invadidos”, diz.
Outros editores concordam e a discussão é resolvida: se mantém o termo considerado neutro.
Cabo Daciolo (Patri) também tem um artigo pequeno, mas a controvérsia se concentra em um único ponto: deve ser chamado pelo seu nome eleitoral ou pelo nome completo, Benevenuto Daciolo Fonseca dos Santos?
São exatos 7.570 caracteres — metade do texto dessa matéria – discutindo qual a melhor denominação para o candidato.
Um editor desabafa: ‘Não entendo o motivo de tamanha complicação para algo mais que óbvio”, diz Érico. Ele vence: fica Cabo Daciolo.
Oficializado como candidato do PT há menos de um mês, Fernando Haddad só passou a ter seu verbete como alvo intensificado de edições recentemente. O primeiro tópico da discussão sobre o artigo, porém, já antecipa que os debates são extensos: “Parcial”, denunciou no início de setembro o usuário Érico.
O comentário motivou discussões sobre que tipo de acusação de corrupção deve constar na página de Haddad e de outros políticos.
“Precisamos definir quando uma acusação é digna de nota ou não. No artigo Geraldo Alckmin, estão removendo acusações sob a alegação de que não há denúncia na PGR (Procuradoria-Geral da República). A presunção da inocência não pode variar de acordo com o partido do biografado”, escreveu Dornicke.
A conclusão das conversas é a de que, de acordo com as regras da Wikipédia, acusações oriundas de delações premiadas vazadas não seriam adequadas aos verbetes.
Hoje, o verbete cita ações por improbidade administrativas apresentadas pelo Ministério Público de São Paulo contra o petista, entre as quais uma foi aceita pela Justiça, tornando-o réu, além de um inquérito da Polícia Federal indiciando-o por caixa 2 em campanha.
Em agosto, outro ponto entrou em disputa. O verbete de Haddad apresentava-o logo na primeira frase como um “acadêmico marxista”, tendo como base o currículo do petista na plataforma Lattes no qual consta que ele estudou o marxismo em seu mestrado e doutorado na USP.
“Alguma fonte diz explicitamente que ele é um acadêmico marxista?”, pergunta Candido, em uma sequência de três edições revertidas contra o usuário Pórokhov e que acabou por aquele vencida, já que hoje o verbete trás apenas a descrição como “acadêmico”.
Troca de acusações
Álvaro Dias (Podemos) e Geraldo Alckmin (PSDB) têm o mesmo número de edições em seus verbetes.
A diferença é o número de edições revertidas — quando alguém pratica um vandalismo ou uma edição disruptiva e os editores voltam a página para a versão anterior.
Alckmin tem 334 edições assim, Álvaro Dias tem 79. Isso indica que há uma disputa muito maior sobre a página do candidato tucano.
No verbete do ex-governador de São Paulo, o usuário Dornicke reclama: “O artigo omite todos os escândalos em que o biografado está envolvido, incluindo o processo em que é réu por pedaladas fiscais, as delações premiados que o identificam com o ‘santo’ da planilha de propinas e a acusação de improbidade em que o MP pede a suspensão de seus direitos políticos.”
Seguem-se uma longa discussão e mudanças no verbete emitidas entre ele e outra pessoa que discorda.
Como os usuários que costumam editar as biografias de políticos costumam ser os mesmos, ataques pessoais são comuns: vira e mexe um usuário vai olhar o histórico de edições do colega para acusá-lo de ter “dois pesos e duas medidas” ou de praticar “vandalismo” e “disseminação de desconfiança”.
Cansado das acusações sendo tiradas e colocadas sem parar na página, o usuário Trierweiller tenta acabar com a guerra de versões: “Não vou importa quem acha que está certo ou errado, só estou pedindo aos envolvidos que discutam aqui, de forma civilizada, antes de fazerem as edições.”
*Todas as estatísticas foram compiladas no dia 03 de outubro.