Pequeno país localizado no Mar Báltico, às margens do Golfo da Finlândia e na vizinhança da Rússia, a Estônia é uma referência global em tecnologia da informação. Independente da União Soviética desde agosto de 1991, o país apostou na digitalização para multiplicar seu PIB per capita de US$ 2.832 em 1992 para US$ 19.840 em 2017. De quebra, acabou vendo o surgimento de um sistema de governo inovador e de empresas famosas, como o Skype.
Parte desse processo passou pelas mãos Toomas Hendrik Ilves, um sueco de nascença que presidiu o país entre 2006 e 2016. De passagem pelo Brasil, onde palestrou sobre os desafios enfrentados pela Estônia para atingir seu status atual.
Na entrevista, ele contou um pouco mais sobre o sistema digital do país, alertou para os desafios da segurança cibernética e pediu colaboração entre Estados para combater ataques de hackers, especialmente aqueles que afetam países democráticos.
Por que a Estônia investiu em tecnologia da informação?
Começamos a fazer isso muito antes de eu virar presidente. Para nós foi uma forma de sair do extremo atraso, da extrema pobreza. No começo dos anos 1990, tínhamos acabado de sair de um domínio soviético de 50 anos. O que você vai fazer? Não tínhamos dinheiro. Existiam algumas ideias e essa funcionou. E continuou funcionando, vimos que era útil
4 pontos que tornam a Estônia um país digital
-Documento digital
Quase toda população tem um cartão de identidade com um chip que carrega uma série de arquivos de documentos, devidamente criptografados. Ele dá acesso a todos os serviços digitais da Estônia, simplificando burocracias de preenchimento de fichas médicas ou bancárias.
-Votação pela internet
Possível apenas por conta do documento digital, a votação pela internet ocorre desde 2005 e funciona de qualquer PC do mundo. Com o cartão, cada cidadão é identificado de forma segura e vota de casa ou da padaria, desde que tenha um PC conectado. Nada de urnas e papéis.
-Histórico de saúde
Qualquer visita médica, exame ou receita para remédios está vinculada à identidade dos cidadãos da Estônia. O sistema foi implementado em 2008 e permite que médicos consigam acessar o histórico do paciente em qualquer consulta e então tomar decisões mais embasadas.
-Cidadania virtual
Apostando no mundo sem fronteiras da internet, a Estônia criou a e-Estônia, uma espécie de versão virtual do país. Você pode se tornar um residente virtual do país (independente de onde mora) e, a partir disso, fundar uma empresa sediada legalmente na Europa, com todas responsabilidades e benefícios.
O sistema que faz a máquina andar
O X-Road, o cérebro digital da Estônia, foi criado em 2001. Ele é um sistema de troca de informações descentralizado, com bases de dados separadas em compartimentos virtuais, mas com facilidade e agilidade na comunicação entre eles. Especialistas o consideram o sistema de governo mais digital do mundo.
Diferentes departamentos do governo administram seus próprios dados separadamente. As informações não são duplicadas em bases de dados diferentes, mas podem ser acessadas de qualquer uma delas. Um exemplo é o processo que segue o nascimento de uma criança.
Quando o bebê nasce, essa informação é enviada direto do hospital para o registro de população. De lá, os dados são direcionados ao departamento de saúde, para que ele tenha um seguro-saúde e um pediatra. Isso simplifica a vida do governo e do cidadão: a mãe não precisa buscar uma certidão de nascimento no cartório, acertar um plano de saúde e aí ir atrás de um médico de confiança. Em contrapartida, o governo não tem gastos com papelada e funcionários – a economia corresponde a 2% do PIB da Estônia.
A identidade digital
Esses são os princípios do documento virtual da Estônia:
- ser único e seguro
- ter validade legal
- usar autenticação em duas etapas
- ter criptografia de ponta a ponta
- ser distribuído de forma abrangente, mas sem ter uso obrigatório
Na Estônia, existem três coisas que você não pode fazer online, que você tem que dar as caras. Uma é se casar. Outra é divorciar. A terceira, é comprar ou vender um imóvel
Em 27 de abril de 2007, um grande ataque digital paralisou a Estônia. Ele afetou bancos, governo, jornais e redes de televisão. Apontada como culpada, a Rússia nunca reconheceu a autoria.
O incidente gerou duas consequências marcantes. A primeira delas é que a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) fundou um Centro de Excelência de Defesa Cibernética Cooperativa, cuja sede fica em Tallinn. O outro foi a implementação do blockchain no X-Road, para dar mais segurança aos dados governamentais, privados e corporativos estonianos.
Como proteger dados na era da internet?
Eu não sei como as leis de proteção de dados do Brasil são, mas é evidente que as pessoas estão apenas começando a se movimentar na direção da proteção dos dados. A Europa adotou uma lei forte, mas, por exemplo, você não tem isso nem nos Estados Unidos
O hack no ano passado da Equifax, uma empresa comercial que tinha dados financeiros de 150 milhões de pessoas, que significam 80% da população adulta dos Estados Unidos. Foi informação pessoal de crédito roubada. E não tem lei, até hoje, que faria qualquer coisa contra isso.
O GDPR entrou em efeito, no dia 25 de maio desse ano, mas antes disso não funcionava também. As empresas lutam, porque custa dinheiro extra implementar os requerimentos para proteção de dados. Eu acredito que é uma questão de tempo antes da maioria dos países adotarem algo parecido com o GDPR.
Colaboração internacional
A Estônia exportou seu sistema para a “irmã” Finlândia e apresentou-o a dezenas de outros países, entre eles Argentina, Uruguai, México, Canadá e Japão. O X-Road também inspirou a criação de programas semelhantes em outros países. Mas Ilves quer mais
O ex-presidente contou que seu país e a Finlândia estão discutindo os parâmetros para que os dois X-Roads conversem. Dessa forma, os dados médicos de um finlandês poderiam ser acessados de um hospital na Estônia, e vice-versa.
Temos visto democracias sob ataques de governos autoritários, tentando manipular a política de formas diferentes, de boatos e propagandas no Facebook a hacks em partidos políticos e servidores. Temos de buscar uma cooperação muito mais próxima entre democracias. Países que têm eleições livres e justas, que respeitam direitos humanos, que têm liberdade de expressão, porque a internet não tem fronteiras